Páginas

quinta-feira, 24 de julho de 2025

CONCERTO: “Le Coup de Majesté - Músicas da época do jovem Luís XIV” | Le Poème Harmonique



CONCERTO: “Le Coup de Majesté - Músicas da época do jovem Luís XIV”
Le Poème Harmonique
Direcção musical | Vincent Dumestre
Com | Éva Zaïcik (mezzo-soprano), Camille Aubret e Louise Ayrton (violinos), Lucas Peres (viola da gamba), Simon Guidicelli (violone), Violaine Cochard (órgão e cravo), Vincent Dumestre (teorba)
Cistermúsica – Festival de Música de Alcobaça
Sacristia Manuelina do Mosteiro de Alcobaça
20 Jul 2025 | dom | 18:00


Estamos no Palácio do Louvre, no segundo quartel do século XVII. Aqui está situada a corte de França - Versalhes não passava, então, de uma aldeia - e Luis XIV acaba de ser coroado rei, iniciando um período de 72 anos correspondente àquele que viria a ser o mais longo reinado da História. Ali, entre o murmúrio do Sena e o ruído dos subúrbios, a vida cultural centra-se no canto e na dança, na pintura e no teatro, levada com desvelo à presença de um menino que não tem sequer cinco anos e a quem tudo fascina. Fascínio que se estende aos aposentos, onde as amas o mimam com histórias de encantar, ou às cozinhas do Palácio de onde saem cantigas, trazidas da rua por padeiros e cozinheiros que, entre patés e perdizes, dançam uma “bourrée” ou tocam pandeireta. Entretanto, em espaços privados, a música barroca encanta o pequeno rei e os membros da corte mais próximos. Foi ao encontro deste quotidiano refinado e requintado, dominado de forma muito particular pela música, que o agrupamento francês Le Poème Harmonique se apresentou em Alcobaça, disposto a recuar no tempo e a oferecer aos presentes uma proposta de viagem pelos ambientes da corte parisiense nos primórdios do reinado de Luis XIV.

Agora o tempo é outro e o espaço onde nos encontramos também. É na Sacristia Manuelina do Mosteiro de Alcobaça que os músicos que integram o Le Poème Harmonique se apresentam ao público, para um concerto que fecha um fim de semana extraordinário, quiçá o mais valioso da programação deste ano do Cistermúsica - Festival de Música de Alcobaça. Jóia arquitectónica, com um conjunto precioso de elementos barrocos e o seu inigualável portal manuelino (recuperado do catastrófico terramoto de 1755), a Sacristia mostrou-se o espaço perfeito para este verdadeiro “golpe de majestade”, envolvendo os presentes no espírito da época e predispondo à escuta atenta de um conjunto de peças que começou em Jean-Baptiste Lully e terminou em… Serge Gainsbourg. Com Vincent Dumestre na teorba e direcção musical, o concerto dividiu-se em duas partes, a primeira voltada para os compositores franceses e para uma fase tardia da juventude de Luis XIV. Foi então possível escutar um conjunto de peças de Michel-Richard de Lalande, Marc-Antoine Charpentier e Étienne Moulinié, para além do já referido Lully e de dois autores anónimos, que tiveram a ligá-las o tom contrastante entre a riqueza e a profusão de elementos tonais da música barroca e a singeleza das ilustrações campestres e dos poemas feitos de graça e leveza.

Com o foco nos compositores italianos da corte, muito por influência do Cardeal Mazarino, primeiro-ministro de França entre 1642 e 1661, recuamos ligeiramente à meninice do rei, para escutarmos Giovanni Battista Buonamente, Marco Uccellini e, sobretudo, Francesco Cavalli, em composições mais densas e complexas que as anteriores, com um carácter marcadamente operático. Cabe aqui falar da mezzo-soprano Éva Zaïcik, da força e harmonia de uma voz única, da sua enorme teatralidade, expressas desde o início do concerto mas que, nesta segunda metade, adquiriram um cunho sedutor, de verdadeiro êxtase. De uma enorme versatilidade, capaz de assumir com a mesma intensidade uma cena do mais puro lirismo ou uma passagem de extrema violência, Zaïcik impressionou pelos seus graves profundos, timbre radiante, sensibilidade inexcedível e entrega absoluta ao elemento cénico. Sem demérito para com os restantes elementos do agrupamento, todos eles irrepreensíveis na interpretação dos mais variados instrumentos, salientaria ainda a violinista Louise Ayrton, um jovem talento a seguir com atenção. O “encore” trouxe-nos o “Invicti, Bellate”, desse expoente máximo do barroco tardio que foi Antonio Vivaldi e, enfim, a enorme surpresa de escutar “La Javanaise”, de Gainsbourg, com instrumentos de outra época e a preciosa voz de uma cantora lírica, como que a fechar um ciclo (ou a dizer que isto anda tudo ligado). Um concerto memorável, o melhor do ano até à data.

Sem comentários:

Enviar um comentário