TEATRO: “Babel”
A partir de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões
Encenação, dramaturgia, cenografia e figurinos | Nuno Cardoso
Vídeo | Fernando Costa
Interpretação e co-criação | Carlos Rodrigues, Cristina Almeida, Edilson Wa Ka Chambe, Emílio Costa, Hermínia Teixeira, José Teixeira, Luísa Costa, Madalena Costa, Marlene Pacheco, Rodrigo Matos, Roldy Harrys, Rosa Quiroga, Sérgio Nogueira, Tiago Ribeiro, Sérgio Sá Cunha, Telma Cardoso
Música ao vivo | Adriano Silva (eufónio), Diogo Gomes (trompete), Lucas Domingos (trombone), Marta Figueira (clarinete), Rafael Fonseca (tuba), Francisco “el Killo” Beirão (percussão)
Produção | Teatro Nacional São João
90 Minutos | Maiores de 12 anos
Teatro Nacional Carlos Alberto
14 Jun 2025 | sab | 19:00
“Vamos construir uma cidade e uma torre cujo cimo atinja os céus. Assim, havemos de nos tornar nomeados para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra.
O Senhor, porém, desceu, a fim de ver a cidade e a torre que os homens estavam a edificar.
E o Senhor disse: “Eles constituem um só povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa alguma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros.”
E o Senhor dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e suspenderam a construção da cidade.”
Livro do Génesis, 11:1-9
Vindo dos tempos conturbados das origens, este é o relato do mito de Babel. Já não era a primeira vez que o Criador e a criação se desentendiam – primeiro, foram expulsos do Paraíso; depois, Caim foi amaldiçoado por ter matado o irmão; depois, o dilúvio, por serem blasfemadores e ímpios; finalmente, Babel, por serem orgulhosos. Pode ter sido diferente nesse tempo, mas nada garante que a mesma língua – um esperanto, inglesing, ou globish – produza uma compreensão mútua se as ideias forem diferentes. É muito mais fácil enganar o parceiro usando a mesma linguagem. Pelos vistos, o Génesis, como hoje, era um tempo de catástrofes (sobre)naturais resultante do confronto entre uma divindade caprichosa e uma humanidade libertina que, ao invés de compreender e praticar a harmonia que lhe fora destinada, gastava o tempo em conflitos, jogos de poder, matanças, invejas, vinganças, orgias e tudo o mais. Com a confusão das línguas e sem acesso à tradução automática, os humanos dispersaram-se e o Criador, muito seguro de si e vingativo, dividia para reinar. Literalmente, Babel significa “Porta do Céu”, mas não entra quem quer. “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” – escreveu Saramago em Caim (2009), sem explicar os desentendimentos reinantes entre o suposto colectivo designado pela primeira pessoa do plural, nós.
A Babel que veio do teatro do mundo para o Teatro Carlos Alberto não é nenhum rebanho conduzido por pastor ou cão. Do tumulto dos dias, transportando vidas contraditórias, as personagens desaguam uma a uma num lugar de onde vão partir novamente. Medem-se, evitam-se e olham-se com sentimentos de superioridade ou desprezo. Pelo telefone de cada uma, este lugar desdobra-se numa teia de assuntos: cada qual tenta organizar o seu mundo e dar conta do estranhamento e da incomodidade que as outras lhe causam. Um padre difunde um velho discurso de Salazar sobre a autoridade e o povo submisso: “Está tudo bem assim e não poderia ser de outra forma.” Dois actores recitam versos do início de Os Lusíadas, de Camões: “As armas e os barões assinalados.” O resultado é uma enorme gargalhada em uníssono. Fala-se a mesma língua, não há nenhuma torre para construir, e o somatório dos indivíduos equipados com dispositivos de comunicação não constitui uma sociedade, um colectivo. Os corpos vigiam-se mutuamente e repelem-se. Cada voz inscreve-se numa bolha, e perpassa por todos um estado de desregulação emocional – a expressão é do filósofo Daniel Innerarity – que traduz a desconfiança, a ansiedade, a fragilidade, a raiva, a ameaça ou o medo com que se interpreta o quotidiano e se verbalizam ideias e actos políticos: nós e eles; o mundo contra mim; eu e o mundo pelas redes sociais.
A esfera pública não existe como lugar-comum do debate público e, à medida que se aprofunda a globalização ao toque acelerado da acumulação do capital, vão desaparecendo os dispositivos de vida em comum, de redistribuição e justiça social, de hospitalidade e cuidado com o outro. Clama-se por segurança, contra os imigrantes, pelos malefícios do CO2, pela extinção dos pandas, pelo clima ou pelos oceanos. Anuncia-se o fim do mundo para que nos esqueçamos do quotidiano e aceitemos qualquer coisa que nos seja incutida como remédio para tal cataclismo, mas o populismo digital apenas serve para manter a fritura quente dos acontecimentos que se sucedem em regime torrencial, sobre isto e aquilo, aqui ou do outro lado do mundo, tudo acelerado e superficial para que a corrente não cesse e a turbulência se mantenha. Atordoados, os indivíduos naufragam no grande turbilhão. A saturação e a dissipação esgotam a energia e mantêm o cidadão entretido, revoltado, amorfo ou enquistado na sua luta pessoal, na sua causa e activismo – existem milhares de causas para abraçar e, juntas, compõem uma cacofonia sem fim. Apesar da presença dos corpos, a pólis ficou reduzida a escombros e ao caos. A indiferença e a individuação encontram terreno fértil na complexidade e na contradição dos tempos, na erosão do Estado Social, numa sensação de cidadania nunca cumprida porque diluída para lá do estado-nação, dissolvido no sistema-mundo do salve-se quem puder, onde tudo se joga, compra ou vende: um emprego, um projecto de vida, uma guerra, um desastre, uma torre no Dubai, ou o paraíso num resort de areia dourada.
Transformada em expressão banal, a comunidade é um mito, uma palavra para repetir até à exaustão, denominando qualquer coisa, com a expectativa de que, depois de tantas vezes repetida, acabe por se revelar na sociedade dos indivíduos. Zygmunt Bauman, o teórico da modernidade líquida, defende que tal insistência se deve sobretudo a uma busca de segurança, usando uma palavra que, antes mesmo de se acabar de pronunciar, arrasta consigo o melhor da condição humana – a solidariedade, a atenção ao outro. Nos EUA, uma comunidade fechada é um condomínio privado. Comunidades abertas são o contrário de mais de um século de antropologia a explicar que as comunidades são muito pouco permeáveis. À volta, o que se vê é mais o cancelamento do que o diálogo, a recusa mais do que a escolha, a rejeição em vez da preferência. O presentismo domina os actos políticos em modo binário e demagógico, e o mercado promete equilibrar tudo, apesar de nunca o ter feito. Esta é a Babel, movimento perpétuo, gente à procura de si mesma, ora muito certa das suas pretensões e “glórias de mandar” dentro da entropia do sistema, ora muito consciente da sua fragilidade, da facilidade com que se pode tornar inútil e ser jogada no refugo. “No mar, tanta tormenta e tanto dano, / Tantas vezes a morte apercebida! / Na terra, tanta guerra, tanto engano”, cantava Camões, como quem hoje fala do cemitério em que se tornou o Mediterrâneo. Quando tudo depende do que se passa no grande mundo, o lugar onde se está torna-se mais relevante, porque aí estará, para cada um, o seu lugar. É urgente que daí possam brotar a utopia e a hospitalidade. É uma questão de desligar as redes sociais, fazer silêncio, ouvir quem somos e que coisas podemos fazer pelos outros. A comunidade não existe, tão pouco a identidade: constroem-se.
[Texto transcrito na íntegra, da autoria de Álvaro Domingues, inserto no Programa de Sala, em https://www.tnsj.pt/ficheiros/eventos/programa-de-sala68406da5db370.pdf; foto de TNSJ, em https://www.tnsj.pt/]
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