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domingo, 8 de dezembro de 2024

LIVRO: "Inventor de Esquecimentos"



LIVRO: “Inventor de Esquecimentos”,
de António Canteiro
Ed. Gradiva Publicações, Outubro de 2024


“ (…) já disse, e repito: posso deixar no mundo um filho, um neto e promessas de bisnetos… mas a figura que se perde atrás de mim é um retrato, aos poucos esmaecido, longe da nitidez de outrora, a imagem que era minha, aquela que saiu nítida da câmara escura… a foto mais brilhante de mim turvou, e agora são estas manchas escuras, sombrias, que me cercam a face; só a memória não me abandona, ela é tudo o que tenho, é tudo o que me resta…”

Terceira incursão de António Canteiro no romance biográfico – depois de “Logo à Tarde Vai Estar Frio” e “Nocturno”, obras que se debruçam sobre as figuras do poeta António Nobre e do compositor e músico Antonio de Lima Fragoso, respectivamente –, “Inventor de Esquecimentos” leva-nos ao encontro de Eduardo Francisco Varela Pècurto. Das experiências marcantes da infância na Quinta do Pinheiro, em Ervedal, no concelho de Avis, aos nossos dias, o livro aborda um percurso de vida marcado pelo olhar e pela curiosidade, pela avidez da novidade, pela vontade de ver mais longe e mais largo, nisso se fundando a arte do decano dos fotógrafos portugueses. O reconhecimento da sua obra expressa-se em inúmeros prémios alcançados em salões nacionais e internacionais de arte fotográfica e, ainda, na atribuição do mais importante prémio internacional no âmbito da fotografia amadora de salão, o Excellence da Féderation Internationale d’Art Photographique, em Barcelona, em 1954.

Embora o cunho biográfico se afirme em “Inventor de Esquecimentos”, o livro escapa às convenções no que se refere ao género e às suas particularidades. Os acontecimentos marcantes de quase um século de vida (Varela Pècurto fará 100 anos no próximo dia 27 de Abril) vão-se sucedendo por ordem cronológica e servem de fio condutor ao livro, mas o olhar decisivo sobre o que deles resta, por diversas vezes materializados em fotografias que se desvanecem com o tempo, esse é o de António Canteiro. Um olhar delicado e sensível, esse olhar poético ao qual nos vem habituando ao longo de uma obra singular, vertido numa escrita elegante, visualmente apelativa, apostada em não deixar cair no esquecimento os vocábulos que fazem da nossa uma língua tão rica. Ao mesmo tempo, o autor amadurece o conceito de memória, aplicando-o à fotografia e levando-nos a ver nela uma ferramenta para a construção de passados. Nesse processo de trazer o passado para o presente através da imagem, a escrita de António Canteiro abraça a arte fotográfica de Varela Pècurto no que ambas têm de imaginário, emoção e poesia.

Só alguém com uma enorme sensibilidade e talento seria capaz de transformar um estreito postigo, esse “buraco emoldurado em pedra”, em visor de um aparelho fotográfico, como olho aberto, desperto, capaz de enxergar a luz amanhecida das plantas, o cordeiro devorando a dente as ervas, o eco da cal sobre o chão. O engenho e inventividade de Varela Pècurto encontra na escrita de António Canteiro uma feliz extensão, uma linguagem visual enraizada no realismo, mas que não descarta o abstracto e o surreal. Pelas mãos de ambos, somos levados ao encontro das verdejantes margens da Ribeira de Alcórrego, das casas imaculadas, sustidas em alvura, ladeadas por planícies, do pássaro grande e estranho, semelhante a uma cegonha, que guia Mariana e António a caminho da vila para a mulher dar à luz, dos andaimes, escadarias e avionetas onde o fotógrafo se encavalita de forma a fazer única e diferente, no futuro longo, a sua arte. Um livro distinguido com o Prémio Literário Joaquim Mestre 2024, uma iniciativa da Associação dos Escritores do Alentejo, que nele destaca a forma como o autor explora “uma visão singular da identidade humana”.

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