EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Intimidades em Fuga. Em Torno de Nan Goldin”,
de Nan Goldin e outros artistas
Curadoria | Nuria Enguita
Museu de Arte Contemporânea / Centro Cultural de Belém
24 Out 2024 > 31 Ago 2025
“Mas, ainda que todos saibam o que significam as minhas palavras, ninguém sabe o que querem dizer os meus suspiros ou os meus estremecimentos. Todos sabem o que significam os termos que utilizo [...] mas só eu sei o que quero dizer quando os digo. E isso o que quero dizer, o querer que habita o âmago do dizer e não o significado das palavras - é o que faz com que ainda haja pessoas que queiram falar comigo. Mais do que a palavra, a intimidade é a voz.”
José Luis Pardo, La intimidad, 2004
Vivemos uma situação paradoxal: embora o direito à privacidade ou à intimidade pareça estar hiperprotegido por lei, a presença da Big Data nas nossas vidas e a monetização dos nossos dados pessoais vai crescendo exponencialmente. Sentimos que estamos a ser vigiados pelo Big Brother de Orwell, ou que vivemos no panóptico de Bentham; e, paralelamente, a revolução digital, as novas tecnologias da informação e da comunicação, e a emergência (em ambos os sentidos) das redes sociais e afins instigam uma presença feliz, excessiva, consentida e transbordante da intimidade. O espectáculo do eu parece dominar um presente que percorre o caminho da mercantilização da intimidade, que se esforça, através da publicidade, por fazer-nos sentir especiais, únicos, insubstituíveis. No entanto, essa intimidade, na sua sobre-exposição banalizada, parece ameaçar, inusitadamente, a própria intimidade. Como diria o filósofo José Luis Pardo em relação ao privado e ao público, “quando tudo é intimidade, nada é intimidade”.
A questão da intimidade tem estado presente na construção do sujeito moderno, particularmente desde o momento em que ele próprio passou a ser um enigma a decifrar, simultaneamente sujeito e objecto do seu próprio conhecimento. Durante o século XVIII, aquele sujeito “moderno” encontrou no retrato um dispositivo eficaz para a auto-afirmação pessoal e de classe. Porém, este não foi o único momento ao longo da história em que a intimidade revelou a sua pertinência no contexto das práticas artísticas. A intimidade pode ser vislumbrada também nos olhares místicos ou visionários que atravessam toda a arte: Na pintura holandesa do século XVIII, no intimismo musical e literário, na estética idealista e no romantismo, onde a arte é expressão do “eu” e a singularidade da experiência gera o impulso criativo. Talvez o auge desta tensão entre o eu mais íntimo e o mundo, no século XX, tenha sido o surrealismo; e mais tarde, na década de 1960, com o aparecimento dos feminismos e a revalorização do popular em toda a sua amplitude semântica, os corpos e os afectos começaram a ganhar destaque.
A arte feminista, em particular, tem-se caracterizado pela representação simbólica do opressivo e pela representação da vida privada e íntima das mulheres, muitas vezes abordando tanto o desejado e o enaltecido quanto o indizível, o abjecto, o proibido, o temido ou o estigmatizado. A intimidade está fortemente ligada à reflexão e à consciência, à subjectividade, à auto-narração e à auto-interpretação. A actividade artística, possivelmente hoje mais do que nunca, é entendida como uma expressão do sujeito, daquilo que nele há de mais específico, singular e íntimo. É isso que “Intimidades em Fuga. Em Torno de Nan Goldin” nos oferece, colocando a intimidade em evidência, dizendo-a, expressando-a, expondo os seus hábitos, estremecimentos e sonhos. Com Nan Goldin, representar a interioridade é habitar a própria vida. É dar voz ao sussurro, e não ao discurso. É tomar consciência da vida (em conjunto) e procurar reconhecer e compreender subjectividades alheias. É partilhar uma vulnerabilidade. É termo-nos e apoiarmo-nos uns aos outros.
[Adaptado da Folha de Sala da exposição, a qual pode ser lida na íntegra em https://www.ccb.pt/wp-content/uploads/2024/07/fsala_IntimidadesFuga.pdf]
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