EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Walking Thru the Sleepy City”,
de Miguel Marquês
Curadoria | Ricardo Nicolau
Novo Banco Revelação 2024
Museu de Arte Contemporânea de Serralves
19 Jul 2024 > 19 Jan 2025
“Valentin Prepelita despediu-se de mim numa manhã de inverno soalheira. Tínhamos bebido uns copos de vinho e fumado uns cigarros antes da partida. Estava contente por ouvir de novo vozes moldavas a arrumar malas na bagageira do autocarro e por sentir que em poucos dias voltaria a
comer mămăligă e borsch. Dei-lhe o dinheiro do bilhete e umas máquinas fotográficas descartáveis para fotografar a viagem. Abraçou-me com uma lágrima no olho, sorriu e agradeceu o gesto. Disse-me que quando chegasse a casa do seu amigo dentista enviaria umas garrafas de vinho de Cricova e as máquinas por revelar. Os meses passaram e não voltei a ter notícias do Valentin. Decidi fazer a mesma viagem de autocarro e procurá-lo por Chișinău. Será isto sobre a busca do paradeiro do Valentim? Sobre a forma como lido com um território que me é estranho, que me encandeia os olhos com uma luz nova, numa pulsão que se esbate com o passar dos dias tornando-se familiar?”
Uma parte considerável da arte actual confere à deslocação, ao nomadismo, um papel fundamental na prática artística – basta pensar que a história da arte é pródiga na figura, essencial, do “homem que caminha”. Muitos são aqueles que instauram a arte como um universo onde a deslocação é mais do que um movimento físico, onde é igualmente um facto psicológico ou mesmo outro nome para a produção artística. É neste universo que se insere Miguel Marquês, cujo trabalho o aproxima da chamada “fotografia de rua”. Sabe-se, porém, que é cada vez mais difícil fotografar na rua, por um lado porque a relação das pessoas com o meio mudou drasticamente (hoje, todos se consideram fotógrafos), mas também porque as próprias ruas (e a forma como se usa e entende o espaço público) se alteraram. Talvez por isso Miguel Marquês tenha tentado, conscientemente ou não, recuperar uma forma de relacionamento da fotografia com o espaço público que já não é possível praticar na capital portuguesa e viajado até Chișinău, a capital da Moldávia, numa deslocação temporal, mais do que geográfica. Através das suas imagens, viajemos com ele.
Não espere o visitante encontrar semelhanças evidentes entre as fotografias que Miguel Marquês realizou em Chișinău e as imagens que possivelmente entendemos como exemplos paradigmáticos da fotografia de rua. Para começar, as fotografias mais icónicas ou representativas daquela prática são imagens a preto e branco, enquanto Marquês faz um uso muito particular da cor; depois, a imprevisibilidade da rua – de que os fotógrafos que nos vêm imediatamente à cabeça quando pensamos em fotógrafos de rua tiravam partido apresentando situações pícaras e surpreendentes, ou personagens que espoletavam uma narrativa – é apresentada por Marquês através de pequenos nadas, praticamente insignificantes (um desenho encontrado no asfalto, uma imagem à janela, objectos dispostos no chão como se de um pequeno altar se tratasse…); também não vemos muitas pessoas nas fotografias de Chișinău – como se a sucessão de locais mais ou menos desolados onde pouco ou nada se passa equivalesse ao tal “espoletar de narrativas através de personagens”, neste caso uma espécie de inquietantes cenários de crimes por acontecer (muito adequados à trama detectivesca que primeiro impulsionou esta viagem à Moldávia).
Aquilo que o fotógrafo decidiu registar em Chișinău é tão importante quanto a forma como o faz: a distância em relação àquilo que fotografa (que quase nunca é a “certa” para ver com clareza), o particular uso da cor (em que os poucos contrastes também não parecem contribuir para nitidez) e a importância do fora-de-campo são elementos fundamentais para avaliar a singularidade da prática de Miguel Marquês. Traços comuns neste seu trabalho são a presença do chão (e de objetos nele encontrados), a recorrência de escadas e de árvores, o pudor em fotografar pessoas que leva Marquês a apresentar-nos as suas costas e, claro está, a quantidade de cães… Os canídeos, a quem são simultaneamente atribuídas capacidades proféticas, habilidades sobrenaturais e sinais de baixeza e marginalidade – a conhecida expressão “ficarão de fora [da cidade celestial] os cães” escrita em Apocalipse 22, estará relacionada com a imoralidade e referir-se-á a pessoas levianas que têm prazer na destruição, na corrupção e na violência –, aparecem aqui sempre sozinhos (quando seria natural que se juntassem em matilhas), como que reclamando que os sigamos. E é tentador…
[Texto adaptado do Roteiro da Exposição, o qual pode ser lido na íntegra em https://cdn.bndlyr.com/nsa343pdfl/_assets/2407_novobancorevelacao_roteiro_site.pdf]
Sem comentários:
Enviar um comentário