CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #84
Apresentação | Tiago Alves
Com | João Rodrigues, Bruno Carnide, Inês Teixeira
Escola de Artes e Ofícios
150 Minutos | Maiores de 14 anos
27 Jun 2024 | qui | 21:30
Os espectadores do Shortcutz Ovar habituaram-se a encontrar um fio condutor na programação das curtas-metragens exibidas em cada sessão. Excluindo as sessões temáticas – as curtas que se aproximam do género do fantástico e do terror em tempo de Halloween, a recente incursão no género histórico graças às comemorações do 25 de Abril –, é um grato desafio perceber aquilo que une (ou separa) as várias propostas de uma noite sempre especial. Desta vez, porém, os programadores resolveram “elevar a parada” e a sessão não revelou um óbvio elo comum. Poderá haver quem argumente que as três narrativas são conduzidas por personagens femininas. Ou que o sugerido tem um peso superior ao que é mostrado. Ou, ainda, que a poesia, esse enorme saco onde tudo cabe, é o delicado traço a unir três argumentos cuidadosamente desenhados. Ou que as curtas são uma súmula de mundos pessoais abertos à novidade, num processo de descoberta que rompe e transforma.
“Ana Morphose”, multi-premiada obra de João Rodrigues, é desta última alternativa um bom exemplo. Filmada em stop-motion, conta a história de uma menina que toma consciência da sua própria verdade após mergulhar, literalmente, num livro, que a faz desaguar num universo fantástico. Quando Ana se dá conta das armadilhas que este novo mundo encerra, é demasiado tarde. Perdida a inocência, regressará a custo ao seu quarto e aos objectos do quotidiano, mas será incapaz de voltar a vê-los da mesma forma. A fragilidade, a precariedade e a insegurança são agora marcas de uma vida presa por cordas. Parece não haver limites para a imaginação de João Ferreira, artífice de um universo metafórico feito de teatros barrocos, jogos ópticos, referências literárias e até de um jardim do Éden muito particular onde não falta o fruto proibido. Visualmente, “Ana Morphose” é precioso, com João Rodrigues a merecer os aplausos do público pela força da mensagem e por um trabalho de animação feito com arte, minúcia e um enorme bom gosto.
Presença assídua no Shortcutz Ovar, Bruno Carnide apresentou em estreia nacional “Memórias de uma Casa Vazia”, curta-metragem de ficção rodada em camcorder digital e película no formato Super 8, e que nos fala das recordações que assombram e confortam uma mulher, expressas através das cartas que escreve ao marido e à filha. Derradeiro episódio de uma “trilogia familiar”, o filme retira uma enorme força do argumento de Cátia Biscaia, uma “peça literária” intensamente poética, amarga e doce ao mesmo tempo. Não fosse a fotografia tão bela, com todo aquele “ruído” a ir ao encontro da memória como um lugar de imagens (cada vez mais) difusas e imprecisas, e o filme quase poderia viver só da palavra, que a voz de Inês Sá Frias tão bem sabe realçar. Mas há Bruno Carnide e o seu jeito de compensar o “medo de usar as palavras” com planos muito belos (inesquecível a imagem dos flamingos nas águas da Ria de Ovar), metáforas de um tempo e de uma vida que se descobre para sempre perdida.
A fechar a noite, Inês Teixeira apresentou “Corpos Cintilantes”, curta de ficção que, com os seus mais de vinte e três minutos, nos veio falar das questões, desafios, medos e mitos próprios da adolescência. Quando Mariana aceita o “inesperado e desconcertante” convite de Jorge para passar um fim de semana com a sua família numa outra cidade, terá idealizado algum tipo de aventura? Quanto de expectativa e de ilusão terá corrido à sombra daquele “sim”? Presente na secção “Semana da Crítica” da edição de 2023 do Festival de Cannes, o filme trata o período da adolescência com enorme cuidado e carinho, um quase pudor, no qual é fácil encontrarmos traços das nossas próprias vivências. Inteligência, corpo, voz, beleza, sedução e desejo são pilares emocionais que se afirmam ao longo do filme como marcas distintivas de um tempo de descoberta e de risco. Também ela a descobrir-se enquanto realizadora, Inês Teixeira fez um filme com o coração e soube pôr nele a emoção das primeiras vezes.
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