TEATRO: “Terror e Miséria no Terceiro Reich”,
de Bertolt Brecht
Encenação e dramaturgia | Jorge Gomes Ribeiro
Cenografia | Jorge Gomes Ribeiro e Marta Fernandes da Silva
Música | António Vitorino d’Almeida
Figurinos | Rita Olivença
Interpretação | Sofia Nicholson, João Cabral, Maria José Paschoal, Rui Luís Brás, Paula Neves, Pedro Pernas, José Mateus, Ricardo Raposo, Rita Fernandes
Produção | Companhia da Esquina
105 Minutos | Maiores de 16 anos
Centro de Artes de Ovar
17 Mai 2024 | sex | 21:30
“Quando ouvimos, no quinto ano, que aquele que diz ter sido enviado por Deus estava agora pronto para a sua guerra, que forjados estavam tanques, canhões e navios de guerra e que havia nos seus hangares aviões em tal número que, levantando voo a um gesto seu, iriam obscurecer o céu, nessa altura decidimos olhar em volta e ver que espécie de povo, composto por que pessoas, em que situação, com que tipo de ideias, iria ele contar sob a sua bandeira. Fizemos uma parada militar.”
A Companhia da Esquina, através do projecto EmCena, trouxe ao Centro de Artes de Ovar “Terror e Miséria no Terceiro Reich”, a partir da obra homónima do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Levada à cena numa altura em que a companhia celebra o seu vigésimo aniversário, a peça resulta numa interpretação poderosa de um dos textos mais significativos e actuais de Brecht, oferecendo uma reflexão crítica sobre as guerras, a manipulação política e a resistência humana em tempos de conflitos globais. A adaptação proposta parte de algumas das vinte e quatro cenas que compõem “Terror e Miséria no Terceiro Reich”, peça escrita durante o exílio dinamarquês de Brecht a partir de 1935 e editada em Praga em 1938. Com um forte cariz político e uma crítica social mordaz, a peça é baseada em relatos de testemunhas oculares e notícias de jornal e traça um amplo retrato da vida na Alemanha sob o jugo nazi. “O que tem de ser especialmente destacado”, notou o dramaturgo alemão, é “o comportamento típico de várias classes sob a ditadura fascista, o conjunto de comportamentos de precaução, de defesa, de medo, mas também de revolta”.
Vigoroso estudo do quotidiano alemão, “Terror e Miséria no Terceiro Reich” afigura-se como um texto atual e imprescindível face ao avanço das políticas de extrema direita e da assunção de um certo movimento nacionalista que toma forma na Europa e no Mundo de hoje. O texto de Brecht denuncia a integridade do homem que é dilacerado pelo domínio do poder e a manipulação de um povo onde são destruídos os planos mais imediatos da sua existência: os seus direitos e a sua liberdade de expressão. É um texto corrosivo e tragicómico, porta-voz das vítimas que são fundamentalmente as classes trabalhadoras contra as quais se ergueu o paradigma nacional-socialista. Estabelecendo uma ligação entre a paranóia hitleriana e a ascensão dos movimentos extremistas dos dias de hoje, este espectáculo, como bem refere o encenador Jorge Gomes Ribeiro, “evidencia a exploração do homem pelo homem (…), numa analogia com a atualidade: a manipulação da notícia, a escalada de conflitos bélicos e a perda de soberania e de direitos humanos. Para Brecht, a arte pela arte é sacrificada pela utilidade de explicar os problemas da sociedade. Este texto é uma ferramenta para interrogar a realidade e mobilizar a consciência política no público, estabelecendo um teatro épico que compõe o resgate dos seus elementos na diversidade de cena.”
A relação entre os quadros encenados é inteligente e a sua sequência parece acertada, deixando para o final o mais irónico e também o mais intemporal, o egoísmo e a ganância e sobreporem-se ao respeito pela vida humana e a atingir foros da mais requintada maldade. O dispositivo cénico mostrou-se de uma enorme versatilidade, permitindo separar os quadros entre si, sem com isso se perder o ritmo e a estrutura do espectáculo. Também os actores se mostraram competentes nos seus papéis, embora se tenha notado alguma dificuldade em entender partes do texto devido a uma insuficiente ou deficiente colocação da voz de alguns deles. Mas é o texto aquilo que verdadeiramente sobressai ao longo de quase duas horas de representação, a forma simples de Brecht mostrar o que é complexo, a objectividade no que é hoje entendido por muitos como contraditório. A intenção é a de fazer apelo às consciências e relançar o debate com base na comparação entre os chamados “tempos sombrios” e a inversão de valores que um número cada vez maior de pessoas se propõem defender nos dias de hoje. São, pois, enormes os desafios que enfrentamos neste início de século XXI, cabendo-nos fazer algo de relevante em defesa dos valores da liberdade, da igualdade e da justiça.
[Foto: Companhia da Esquina | https://www.facebook.com/CiaDaEsquina]
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