LIVRO: “Fado Alexandrino”,
de António Lobo Antunes
Edição | Maria da Piedade Ferreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Novembro de 1983 (13ª edição, Outubro de 2021)
“O que diria o meu tio se visse isto, pensou, o que camandro julgaria o velho, um capitão intimava as fieiras de janelas desertas a renderem-se, tanques de guerra chegavam e partiam, lentamente, perante um vociferante emaranhado de línguas, cantavam-se slogans díspares, desordenados, incompreensíveis, que amadores teatrais de camisa aos quadrados como o rapaz da Pide procuravam unificar agitando os braços à laia de maestros de orfeão, Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De, Uma questãozinha de horas, informou-o alegremente um entusiasta de pêra, amanhã vá vê-los baloiçar nos candeeiros da avenida, mas não houve execuções, meu capitão, não houve sangue, não houve uma revolta a sério, os que mandavam antes ocupam o poleiro outra vez, depois de uns anitos de exílio, depois de umas semanas de cadeia, de forma que continuamos na mesma nesta terra de merda, tanta felicidade, tanto trabalho, tanta chinfrineira para quê, (…)”
Tenho pela escrita de António Lobo Antunes um forte sentimento de atracção e rejeição. Há sempre uma grande reserva no momento de abraçar um novo livro, certo de que a sua prosa me vai enredar nas sempiternas imagens proféticas, nas densas e indiscerníveis camadas de comédia absurda, de violência atroz e de sofrimento profundo, tudo misturado e confundido como num distorcido e interminável pesadelo. Sei que demorarei muito mais a ler um livro seu do que outro, com idêntico número de páginas, de um qualquer autor, e que irei recuar mil vezes na leitura ao encontro da ponta da meada mil vezes perdida. Mas faço-o sempre com um interesse renovado, o espanto evidente, a admiração por uma prosa que não se assemelha a nada, que encanta e aterroriza ao mesmo tempo, um pé poisado no céu e outro no inferno. Assim é, de novo, com “Fado Alexandrino”, aproximação de uma enorme crueza à essência do “ser português”, um romance que faz do 25 de Abril de 1974 um momento histórico único, estabelecendo a partir dele um antes e um depois, tão distantes, mas tão próximos.
Lisboa, 1970. O acaso dita que, no mais profundo da floresta moçambicana, um punhado de homens se conheçam e vivam as mesmas histórias no contexto de uma guerra. No regresso a casa, cada um deles traz consigo as marcas de experiências traumatizantes, às quais procuram sobreviver. Cinco deles marcam encontro num restaurante, dez anos após a vinda de África. À mesa, as memórias dos trágicos tempos da guerra surgem amplificadas no contexto de um quotidiano monótono e desinteressante. Há vivências distorcidas e frases desconexas, articuladas no mais puro dos cinismos. A realidade e a fantasia brincam às escondidas entre si. Frases são ditas sem que se saiba por quem, as elucubrações sucedem-se, ergue-se um redemoinho das mais turbulentas visões, especulações beligerantes sentam-se lado a lado com a fragilidade de cada um. Do restaurante para a boîte e dali para casa de um dos camaradas, no tempo de uma noite passam-se em revista as glórias do passado, avalia-se a vacuidade do presente e toma-se o pulso ao futuro, no embalo de uma garrafa de whisky, nas vozes roucas de uma mão cheia de prostitutas e no frio gume de uma faca de cozinha.
“Fado Alexandrino” é um livro para devorar, regurgitar e voltar a devorar repetidamente. É uma demência sustentada, uma incisão cirúrgica no que o homem tem de mais puro egoísmo. Fico impressionado ao pensar no labor criativo de António Lobo Antunes, na sua forma de pegar em todas estas histórias de outras tantas personagens e contá-las de maneira caótica, mas absolutamente controlada. Um único parágrafo pode conter três ou quatro sequências narrativas distintas entre si, com momentos, lugares e personagens diversas, mostrando o quanto pode uma simples vírgula. As imagens são de uma riqueza visual única, que ora se evidencia em cor e brilho, ora se desvanece para voltar a aparecer em todo o esplendor algumas páginas (ou apenas linhas) mais à frente. Como uma onda que se desfaz sobre a rocha e se espalha ao redor, assim é a linguagem de Lobo Antunes, incessante, impetuosa, violenta, que nos faz mergulhar e vir à tona aflitos, para uma breve inspiração antes de novo mergulho. O ritmo é galopante, os cortes sucedem-se, são constantes as mudanças de cenário. Ao leitor, uma escolha apenas: Abraçar os ambientes repulsivos que atravessam o livro e embarcar na convulsão literária em busca da redenção.
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