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sexta-feira, 24 de maio de 2024

CINEMA: "O Sabor da Vida"



CINEMA: “O Sabor da Vida” / “La passion de Dodin Bouffant”
Realização | Tran Anh Hung
Argumento | Tran Anh Hung
Fotografia | Jonathan Ricquebourg
Montagem | Mario Battistel
Interpretação | Juliette Binoche, Benoît Magimel, Emmanuel Salinger, Patrick d'Assumçao, Galatéa Bellugi, Jan Hammenecker, Frédéric Fisbach, Bonnie Chagneau-Ravoire, Jean-Marc Roulot, Yannik Landrein, Sarah Adler, Mhamed Arezki, Pierre Gagnaire, Cécile Bodson
Produção | Olivier Delbosc
França | 2023 | Drama, História, Romance | 135 Minutos | Maiores de 12 anos
UCI Arrábida 20 – Sala 7
23 Mai 2024 | qui | 16:05


A palavra “sabor” não evoca apenas os sentidos - os gostos, os cheiros, o aspecto -, tudo aquilo que nos preenche e dá prazer, mas remete também para os tempos de uma vida, para os momentos gratos ou dolorosos, para a noção de finitude. “O Sabor de uma Vida” dá-nos disso uma visão terna e sensível, quer através das horas passadas pelo gourmet Dodin (Benoît Magimel) e pela sua cozinheira Eugénie (Juliette Binoche) na preparação de sumptuosos banquetes para os seus convidados, quer na forma como abraça duas décadas de relação amorosa entre ambos ou realça as páginas rasgadas do calendário da sua idade. Prova disso é a longa e quase sem palavras sequência de abertura que nos mergulha numa cozinha de finais do século XIX e nos oferece uma valsa lenta, calorosa e delicada, repleta de deliciosas visões de assados, tortas, ensopados e sobremesas, ao encontro dos mais elevados níveis de apresentação e paladar. Mas essa sequência culinária é, também, um fulgor de carácter e relacionamentos em torno da subtil dinâmica entre Dodin e Eugénie, ao mesmo tempo que redefine o relógio interno do filme, fazendo-o recuar a um momento muito anterior à era vertiginosa em que hoje vivemos.

Adaptação livre do romance “La Vie Et La Passion de Dodin-Bouffant, Gourmet”, de Marcel Rouff (1924), o filme não alimenta a ideia de um amor em torno da comida. Em vez disso, desenvolve uma descrição encantadora e comovente de um relacionamento terno entre duas pessoas de meia-idade. As inocentes paixões da infância ficaram muito para trás, substituídas por aquele brilho que combina conforto e desejo perpétuo. Além disso, Dodin e Eugenie têm idades que mostram que o seu vínculo amoroso não foi celebrado na juventude. Com grande delicadeza, o realizador explora o envolvimento romântico dos actores (Binoche contracena com Magimel, com quem viveu entre 1999 e 2003 e de quem tem uma filha), fazendo dessa relação um suporte emocional. É um privilégio ver personagens que possuem tanta intimidade retratarem essas conexões e familiaridade de forma tão convincente, exaltando-as em cada momento de silêncio. Não são necessárias palavras enquanto se passam os ingredientes na cozinha, se assiste ao cair da noite sobre os campos ou quando Dodin entra furtivamente no quarto de Eugenie, a porta deixada propositadamente destrancada.

Parte essencial do filme, toda a vertente gastronómica é apresentada de forma requintada, sem que para tal o realizador tenha necessidade de recorrer a construções fictícias de coloridos refogados, recheios elaborados ou sucos que se derramam como rios de lava. Crus e viscosos, lodosos e sanguinolentos, os ingredientes são manuseados com total naturalidade pelos actores, evocando o igualmente emocionante “A Festa de Babette”, filme dinamarquês de 1987 realizado por Gabriel Axel. Todavia, as refeições em si são mais comentadas do que mostradas, evocando sentimentos que vão do afecto mais profundo às situações de irresistível comicidade, estas últimas expressas na biliosidade mal reprimida de Dodin diante de um cardápio elaborado sem outro critério senão o de ostentar e impressionar pela quantidade dos pratos e dos vinhos. E há, como é evidente, Juliette Binoche e Benoît Magimel, extraordinários de contenção, segurando as pontas de um filme com um argumento extraordinariamente simples mas eficaz. De “O Sabor da Vida” apetece dizer que é um filme delicioso.

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