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sábado, 11 de maio de 2024

CINEMA: "Ainda Temos o Amanhã"



CINEMA: “Ainda Temos o Amanhã” / “C’è ancora domani”
Realização | Paola Cortellesi
Argumento | Furio Andreotti, Giulia Calenda, Paola Cortellesi
Fotografia | Davide Leone
Montagem | Valentina Mariani
Interpretação | Paola Cortellesi, Valerio Mastandrea, Romana Maggiora Vergano, Emanuela Fanelli, Giorgio Colangeli, Vinicio Marchioni, Francesco Centorame, Raffaele Vannoli, Paola Tiziana Cruciani, Yonv Joseph, Alessia Barela, Federico Tocci, Mattia Baldo
Produção | Lorenzo Gangarossa, Mario Gianani, Vindhya Sagar
Itália | 2023 | Comédia, Drama | 118 Minutos | Maiores de 14 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 8
10 Mai 2023 | sex | 13:30


Uma das maiores dádivas do cinema italiano ao mundo da sétima arte foi o neo-realismo. Luchino Visconti, Roberto Rossellini, Federico Fellini e Vittorio De Sica erguem-se como os principais responsáveis por um género totalmente novo em Itália, baseado em narrativas de carácter social e filmadas no local, afastando-se dos filmes realizados até então em estúdio, como aqueles produzidos na famosa Cinecittá, em Roma, entretanto seriamente danificada durante a Segunda Guerra Mundial. Oito décadas depois, numa clara homenagem ao género, Paola Cortellesi oferece-nos “Ainda Temos o Amanhã”, um filme passado em Itália, no contexto de um pós-guerra extremamente duro para as classes trabalhadoras, que tentam a todo o custo reerguer-se após a derrota do fascismo. É em Roma que vamos encontrar Delia e a sua luta para contornar as dificuldades económicas e garantir o sustento da família, ao mesmo tempo que é obrigada a lidar com um marido violento, sempre pronto a desvalorizá-la, e com os filhos numa idade “difícil”.

Situando o filme num momento histórico preciso e filiando-o num género cinematográfico que remete para questões de ordem económica, social e política, Paola Cortellesi fala-nos, essencialmente, de violência doméstica, num tempo em que os maridos tratavam as mulheres como se fossem donos delas, em total impunidade sob o tecto familiar, mesmo com o resto da comunidade plenamente consciente dos abusos cometidos. Fazendo da denúncia uma arma, a realizadora desenvolve a narrativa de uma forma criativa, ora recorrendo a apontamentos coreográficos que realçam a violência física e psicológica das situações de conflitualidade, ora buscando forças numa banda sonora que oscila entre a modernidade e a tradição. Com um pé no passado e outro no presente, Cortellesi lembra os passos dados pelos movimentos dos Direitos das Mulheres e de que forma cada uma delas contribuiu para a afirmação da sua autonomia e liberdade como valores fundamentais.

Nos tempos mais recentes, dificilmente um filme me terá desconcertado tanto como “Ainda Temos o Amanhã”, os momentos de atracção e de rejeição a equivalerem-se até às cenas finais, o cerne do próprio filme, cuja surpreendente viragem de direcção leva o espectador a reequacioná-lo por completo e a valorizá-lo na medida da sua força. Arriscado, o propósito de levar ao limite as aparências e de, com isso, poder criar no espectador um estigma de distanciamento ou de rejeição irrevogável, revela-se uma aposta ganha, já que a mensagem final acaba por suportar todo o filme e por fazer chegar o seu eco aos dias de hoje. Interpretada pela própria realizadora, Delia, a heroína deste filme, ilumina o ecrã do princípio ao fim, carregando sobre os ombros a aura de esperança que atravessa o filme e que começa logo no próprio título (o qual, como veremos, tem na palavra “amanhã” um duplo sentido). Um filme a merecer a nossa surpresa e aplauso, ainda para mais tratando-se de uma primeira obra.

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