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domingo, 7 de abril de 2024

TEATRO: "Livrar-me"



TEATRO: “Livrar-me”
Texto | Ana Lázaro
Criação e interpretação | Sandra Barata Belo, Raquel Oliveira
Assistência de encenação | Carolina Ferrão
Cenografia | Rui Francisco
Música | Luísa Sobral
Figurinos | Pilar Peres
Produção | Beladona
60 Minutos | Maiores de 12 anos
Centro de Artes de Ovar
05 Abr 2024 | sex | 21:30


“Noite. Uma cozinha cheia de livros. Sente-se no ar o aroma de uma cebola a crepitar no fundo de uma panela com azeite. Uma mulher prepara-se para fazer uma sopa, olha para o fundo da panela, fala sozinha. Descreve cada movimento que executa como se fosse a narração de um livro, como se fosse a voz do narrador que dita os movimentos de uma personagem. Ou talvez seja ela a personagem que faz nascer a narração. Pára. Escuta-se. Sorri.” É numa sala por onde se espalha o aroma de uma sopa a fazer que vemos esta mulher mergulhada na leitura de um livro, que vai mexendo a sopa e provando “para ver se está bem de sal”. Fala em voz alta, inventa “capítulos tão breves quanto o tempo da sua voz a atravessar o silêncio da casa”, abre espaço a personagens que parecem existir apenas na sua imaginação, mas que acabam por se materializar na figura de uma filha. Ambas partilham o mesmo espaço e tempo, mas em dimensões diferentes. Ou serão as duas a mesma pessoa, num mesmo espaço, mas habitando tempos diferentes?

Denso, intenso, intrigante, o texto de Ana Lázaro abre-se a múltiplas interpretações. A história não é linear, gira sobre um eixo que transita da cabeça da mulher para a panela onde ferve a sopa e que ela mexe, às voltas, às voltas, na sua que é a história de todas as mulheres, milenar, sem fim nem princípio. É para esse universo feminino que “Livrar-me” remete (o aroma da sopa está lá para o lembrar), a casa com tudo aquilo que preenche uma parte do quotidiano da mulher, a cozinha como núcleo em torno do qual tudo acontece, a (des)arrumação dos objectos, os espaços exíguos que, por artes que as mulheres tão bem dominam, abrigam sempre mais e mais coisas sem que, por isso, se tornem menos funcionais. Mas remete também para o universo dos livros, escapatória possível ao peso das obrigações domésticas, numa “homenagem” que se concretiza na viagem por obras de escritores como Adília Lopes, Stefan Zweig, Jorge Luís Borges, José Eduardo Agualusa, Afonso Cruz, Isabel Allende, Mia Couto, Lewis Carroll, Clarice Lispector e todas as escritoras e escritores que nos oferecem as suas histórias, que com o leitor partilham os seus mundos.

Mergulhar o espectador numa história que se expande por universos paralelos e em diferentes dimensões, propondo-lhe o exercício de a descodificar, é uma das grandes forças da peça. A outra reside na simplicidade e versatilidade de um cenário que vive do predomínio dos livros e de uma biblioteca que se vai abrindo e desmontando. Concebido por Rui Francisco, prende a atenção para as soluções que oferece, para aquelas estantes que vão articulando entre si para dar a ver os vários espaços de uma casa, com particular destaque para a cozinha que, deslocando-se, faz com que a perspectiva se altere, a frente passe a ser as traseiras, lugar de intimidade, de todos os segredos. De resto, uma casa cheia de livros é algo que, particularmente, me agrada. Sobretudo a sua aparência de desarrumação, porque “os livros são para andarem espalhados, em cima da tampa da sanita, atrás da cómoda, sobretudo na cozinha, com o resto dos ingredientes”. Um belíssimo espectáculo, ao qual Sandra Barata Belo e Raquel Oliveira emprestam a força da sua presença e a qualidade da sua representação.

[Foto: Ovar / Cultura | https://www.facebook.com/ovarcultura]

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