LIVRO: “Os Memoráveis”,
de Lídia Jorge
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2014
“Não havia rumor, não havia estrondos, não havia sirenes, não havia polícia e nós pensámos. Teremos mesmo nós cem colocado a gravação no ar? Foi mesmo verdade, ou foi um sonho, que há meia-noite e vinte o som dos passos começou a rolar pelo país fora, e depois dos passos do coro veio a voz do Zeca? A canção do Zeca? O cante dele? A sua voz alternando com a voz dos companheiros? Meu Deus! Tanto silêncio, tamanha calma, pensámos, nós cem, quando parámos entre as duas igrejas. Possivelmente terá sido uma fantasia das nossas cabeças, nós cem não teremos colocado a fita no ar, a canção não terá passado, ninguém neste país a terá escutado, nenhum civil, nenhum militar em nenhum quartel, em nenhum regimento, e era por isso que nada iria acontecer. Pensámos nós, os cem.”
Quanto tempo será necessário para decifrarmos o que verdadeiramente se passou no 25 de Abril de 1974? Há que arrepiar caminho, já que o tempo começa a escassear, a memória vai pregando partidas e os grandes actores desses momentos vão desaparecendo do mundo dos vivos, levando consigo a verdade dos momentos que fizeram deles memoráveis. Lídia Jorge oferece, com este seu livro, um conjunto de pressupostos que são, se assim o quisermos entender, manobras de aproximação à realidade dos homens e mulheres de Abril, aqueles que, ao lado de El Campeador, no próprio dia da Revolução, se viraram para o general que fixava cada um deles através de uma lente de vidro e prometia prebendas a quem tinha feito o golpe de Estado: “Não queremos recompensa nenhuma. E tome cuidado connosco, general. Olhe que este dia ainda não terminou, a revolução ainda está na rua, os tanques ainda não regressaram aos quartéis, e os rapazes que têm as armas só vão precisar de dormir lá para o mês que vem.”
O poder da ficção é enorme, mostra-nos a autora neste seu livro. Partindo de um trabalho para uma série de uma cadeia de televisão norte-americana, uma jornalista portuguesa regressa a Portugal cinco anos depois de ter deixado o País. Nesta “viagem ao coração da fábula”, tem por missão documentar os momentos de uma revolução feita sem derramamento de sangue e entrevistar alguns dos seus principais protagonistas. Um jantar que se estendeu pela madrugada fora e uma fotografia que ilustra o encontro de “memoráveis” são o ponto de partida de uma viagem ao passado, onde a irreverência, a audácia, a coragem e a nobreza se cruzam com a hipocrisia, a falsidade e a traição. Onde se olha, uma e outra vez, para os portões com buracos feitos por balas, para os braços das mesmas árvores onde populares se empoleiraram para assistir à queda de um regime de meio século, para o mar de gente a descer a avenida com espigas de trigo nos chapéus e cravos na lapela, um povo outrora escravo a cantar a liberdade.
Hábil a trazer-nos a sua visão da História, Lídia Jorge faz de “Os Memoráveis” um exercício de recuperação da memória. São muitos os momentos eloquentes, desde logo a recusa do “Ministro” em atribuir a Salgueiro Maia uma pensão vitalícia “por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país”, depois do pedido ter sido votado favoravelmente pelo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República. A autora não refere o nome deste “Ministro”, da mesma forma que nunca menciona os nomes dos “memoráveis”, optando por uns enigmáticos Oficial de Bronze e Charlie 8, Tião Dolores e El Campeador, o Nunes e Ernesto Salamida, os poetas Ingrid e Francisco Pontais. Caberá ao leitor descobrir quem é quem nesta história, sendo certo que uma passagem pelos motores de busca mostra a quantidade de leitores e estudiosos que se vão debruçando sobre o assunto e partilhando as suas conclusões. Por tudo quanto nos traz e pela forma como está escrito, “Os Memoráveis” é um grande livro de Abril, um livro de hoje e de sempre.
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