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segunda-feira, 11 de março de 2024

LIVRO: “O Mundo Visto do Meio - Crónicas seguidas de Um auto do século XX”



LIVRO: “O Mundo Visto do Meio - Crónicas seguidas de Um auto do século XX”,
de Conceição Lima
Ed. Editorial Caminho, Fevereiro de 2023


“A África é um grande continente, aquilo era só um bocado de organização e menos corrupção. Corrupção há em todo o lado, mas lá é demais. Mas a África tem tudo, tem tudo e já nem falo do sol… os chineses perceberam e a Índia também anda à espreita e o Brasil não deve andar na sorna. Mas o problema mesmo são aqueles dirigentes, tá a ver? querem tudo só para eles, é só carros de luxo, mansões com piscina, luxo e mais luxo e o povo que se lixe.”

Guiados por Conceição Lima, viajamos até esse “meio do mundo” que é S. Tomé e Príncipe, mil quilómetros quadrados de terra lávica, o mar em volta de onde nasce a cor azul. Uma viagem poética prenhe de emoções, que carrega o peso da história e da cultura, dos sabores e tradições, da prodigalidade da terra e da generosidade das gentes. Que nos abre um mundo novo feito de paisagens de cortar a respiração, de plantas como a fya-ponto ou a gimboa, de peixes como o maxipombo ou o zanvé, de frutos como a goiaba ou o limão da terra, de pássaros como o tomé-gagá, o suin-suin, o ossobô ou o selêlê. Que nos senta à mesa sob um frondoso micondó e nos dá a provar o calulú e o ijógó, “pratos cerimoniais, testes de aptidão”. Que nos fala da escritora Maria Odete Costa Semedo, da poetisa Alda do Espírito Santo ou do cantor José Aragão. Que nos traz a doçura ritmada do crioulo. “Uma kuesa qui non mudô aqui ainda, é êssi chêro di baro molhado, quando água rebenta como kuesa qui deus tá a despejá todo rio di céu pa cima di genti, pa cima di planta, pa cima di tera.”

Reunindo um conjunto de vinte e três crónicas publicadas originalmente na revista África 21 e no jornal digital Téla Nón, “O Mundo Visto do Meio” traz também com ele “Um Confronto Imaginado e uma Profecia”, texto vencedor da primeira edição do Prémio de Literatura Dramática Isaura Carvalho. De forma breve mas intensa, a autora teatraliza o encontro de Salustino Graça do Espírito Santo, agrónomo, proprietário agrícola e líder dos forros (descendentes de colonos brancos e escravos alforriados do séc. XVI), com o Tenente-Coronel Carlos de Sousa Gorgulho, governador da colónia de São Tomé e Príncipe, no qual este último pede ajuda para a angariação de mão de obra para as roças de cacau, numa altura em que o preço do produto nos mercados internacionais está em alta. Improdutiva, a tentativa de negociação virá a ficar marcada, nos dias 03 e 04 de Fevereiro de 1953, por violentos confrontos com a população, naquilo que ficou conhecido como o Massacre de Batepá. Vinda de longe, transfigurada, é a voz de Salustino Graça que rompe o silêncio, honrando o sacrifício dos mártires numa pungente cena final. Uma pérola preciosa que vale, por si só, o investimento na leitura deste livro.

De regresso às crónicas, importa dizer que nem só de tranquilidade, beleza e doçura se escrevem as páginas deste livro. A prosa de Conceição Lima é uma declaração de amor à sua terra, mas é também - e por isso mesmo - um objecto de reflexão e denúncia, alertando para os “lôgôzos” de toda a espécie que pululam na sociedade são-tomense, para a chocante falta de literacia da classe estudantil, para a corrupção endémica que cava assimetrias e trava o crescimento económico. São significativas as crónicas onde se percebe a vontade de mudança, seja através do exemplo de cidadania dado pelo Movimento Civil contra a Desflorestação do Sul da ilha de São Tomé, da denúncia de uma rusga que é, toda ela, uma encenação, uma “coreografia de máscaras negras para suscitar um (E)estado de medo”, ou de um parlamento em que uma maioria chumba o pedido de apoio à deslocação do Primeiro-Ministro a uma República vizinha (ainda que as viagens do chefe do governo não careçam de aprovação pelo parlamento, “mas a imaginação é livre”). Um livro onde é clara a entrega de Conceição Lima à sua terra. Uma prosa que é expressão do desejo de um país melhor e mais justo, onde a liberdade e a democracia sejam a expressão da vontade férrea do seu povo.

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