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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

TEATRO: "A Casa"



TEATRO: “A Casa”
Dramaturgia | Álvaro Laborinho Lúcio, Luís Ricardo Duarte, Raquel Patriarca, Rui Spranger
Direcção de actores e encenação | Rui Spranger
Interpretação | Álvaro Laborinho Lúcio, Luís Ricardo Duarte, Raquel Patriarca, Rui Spranger, Sílvio Fernandes
Produção | Correntes d’Escritas
60 Minutos
Casa Museu Manuel Lopes, Póvoa de Varzim
24 Fev 2024 | sab | 18:00


“Só a memória enriquece e alimenta. Não há pedra que mais sangre nem asa que mais nos liberte. Talvez por isso os Saberes da memória respirem um tempo e um espaço muito próprios. A morte, que tudo transfigura, pratica as artes supremas da imprevisibilidade. E, nesta imprevidência se compraz, irremediavelmente, a nossa humana condição.”
Manuel Lopes, “O Barco Poveiro”, Prefácio, 1995

É nas traseiras da Casa que tudo começa. Não no jardim ou nuns quaisquer anexos, antes numa outra casa, mandada construir por Manuel Lopes para receber os conhecidos e amigos de passagem que na Póvoa quisessem pernoitar. É lá que conheceremos os quatro anfitriões — há quatro anos aqui irmanados, “um bando de irmãos”, a criar entre si, e com os espectadores, verdadeiras correntes de escritas — e, através deles, a Casa, com os seus recantos povoados de livros e objectos de colecção, as histórias que encerra, as memórias vívidas, os cheiros entranhados, os seus ruídos, os seus segredos, os seus fantasmas. Mas nada de conclusões precipitadas: Isto é tudo menos uma visita guiada a uma Casa Museu. É antes uma intromissão no “espaço além da pessoa que dele se separa”, uma devassa dos seus esconderijos mais secretos, uma intrusão nos lugares mais íntimos. Fascinados ao entrar, é como violadores que nos iremos sentir no momento de abandonar a Casa.

No lugar comum, que é o lugar de todos os lugares, palpam-se os segredos, adivinham-se os fantasmas. De lupa em riste, o zelador vai abrindo, uma a uma, todas as portas. É com orgulho que se diz amigo do proprietário, de este lhe ter confiado a chave da própria Casa. Hoje não é mais do que um fantasma, bem como a mulher que, longe dos poetas de voz maior e dos cristos de olhar desapontado, habita o sótão da casa, o seu regaço, o seu abrigo, o lugar onde se sabe rainha, capitã de lancha. Ou o homem que, na Sala, se interroga sobre o infinito em cada página e sobre a essência da profissão de bibliotecário nesse interminável “seleccionar - catalogar - arquivar” (ou viajar, ou disponibilizar, ou partilhar, ou personalizar). Ou o próprio Manuel Lopes que, debruçado de um escadote, fita com desalento o amontoado de rolos de papel que escondem o seu interior, retratos de Zeca Afonso, Che Guevara e de si próprio, um espelho quebrado, cristos em cartão pendurados nas paredes, bugigangas espalhadas por todo o lado: “Quinquilharia, tudo quinquilharia.”

Nascida de um texto dramático escrito dentro da Casa Museu Manuel Lopes por quatro participantes da residência literária “D’Escritas 1 Dia”, “A Casa” é uma multifacetada peça de teatro, “reflexo da personalidade do próprio Manuel Lopes, habitante ausente da Casa que serve de cenário, mas também de personagem”. Homem de ideias, historiador e ensaísta, bibliotecário icónico, revolucionário antifascista e apaixonado pela cultura e sociedade poveiras, Manuel Lopes é alvo de uma belíssima homenagem ao longo dos aposentos da Casa que foi sua. Nas vivências que suscita, nas memórias que guarda e nas histórias que conta, este é o lugar de um homem com os seus segredos. Também com os fantasmas que o visitam, o silêncio das suas falas a misturar-se com os silêncios da Casa. De uma entrega e generosidade enormes, os actores acrescentam voz e movimento a um lugar tornado único pela singularidade de quem o habitou. Um exercício de teatro intenso e denso, que nos convida a reflectir no(s) valor(es) do que foi nosso quando virarmos costas a este mundo.


1 comentário:

  1. José Almeida da Silva27 de fevereiro de 2024 às 11:25

    Excelente texto! Os actores desempenharam maravilhosamente o seu papel. O autor do texto trouxe-nos o Manuel Lopes e a Casa, inteirinhos. Muito obrigado.

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