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sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

LIVRO: "Um Cão Deitado à Fossa"



LIVRO: “Um Cão Deitado à Fossa”,
de Carla Pais
Ed. Porto Editora, Fevereiro de 2022


“Se ao menos tivesse sido o filho a falar, certo era que aquilo não ficaria por ali, Urbano levantaria a voz para o mandar calar ou para lhe desligar o telefone nas ventas como é hábito dos presunçosos, mão não, fora Maria Rita, a filha, uma mulher a erguer a voz, a descoser-lhe a arrogância e a vaidade. A única mulher que ousara enfrentá-lo, sem medo, a única que o apoucara sem resguardo, que o despira de virtudes para o despir de pecados e disformidades. De nada. Os defeitos ali talhados na voz da filha, que articulava as palavras com força, que não mostrava vassalagem à besta, que dizia,
tenho vergonha de um pai como tu,
não me chames filha,
não tens respeito por ninguém…
nem por ti mesmo!”

Entre o perdão e a culpa, há uma vida que se apaga e outra que renasce. Chega desta forma ao fim “Um Cão Deitado à Fossa”, livro desapiedado, de uma dureza violenta, sem cedências na sua forma de ser rude e crua, que rejeita quaisquer efeitos de bondade ou desejos de redenção. Um livro que se espraia por dias enganosos e manhãs que começam sempre à mesma hora, que se mostra nos olhos arremelgados e nos dedos gretados, nas mãos calejadas e nas unhas dos pés engrossadas das micoses. Feito de sonhos quebrados e ideias imperfeitas, olhos acesos de cismas e pressas na barriga, corpos derreados e pedras no lugar do coração. Visceral, impulsivo, incómodo, primitivo, nele as palavras mais brandas são banalidades de assuntos vazios. As mais das vezes, erguem-se em silêncios que ferem ou estalam na vileza de um insulto ou na ameaça mais brutal. Sempre, mas sempre, essa ausência de felicidade a tomar conta de tudo e a impor-se como uma inevitabilidade.

Podemos imaginar uma serração, tal como nos é sugerido na sinopse deste livro. Ao barulho da serra que não para nunca, sobrepõe-se o silêncio de um homem. Tem junto a ele os dois filhos, que trata de maneira desigual. A um deles, o mais frágil, o pai dá tudo. Ao outro, reserva toda a sua indiferença e despeito. É neste ambiente de uma “ruralidade fechada nos seus próprios fantasmas”, que Urbano irá crescer à sombra da mãe, também ela arredada das boas graças do marido. Um dia far-se-á homem, lembrará o pai como o dono à ordem do qual se agacha um exército de cães, parecer-lhe-á ainda ouvir as suas palavras que o tratam como “um inútil, desgraçado”, mas mostrar-se-á incapaz de lidar com a mulher e os filhos de forma substancialmente diferente. O mesmo ensimesmamento, a mesma insensibilidade, uma total inépcia para ver nos seus aquilo que realmente são, a sua família. E, todavia, continuará a perguntar pela vida fora: “Do que são feitas as bestas, senhor?”

Que modo de ser é este, que transforma a bondade em indiferença e o amor em prepotência, que desconhece o sentido do decoro, se afirma na arrogância e faz orelhas moucas à moral e à razão? Esta espécie de vírus que parece inscrever-se no código genético, tornando o miserável escravo da sua própria miséria? De uma extraordinária coerência, a história que Carla Pais nos oferece arrepia naquilo que adivinhamos nela de verdade. A escrita vive de momentos simples, tornados intensos pelas emoções que conseguem despertar ao encontrarmos neles traços das nossas próprias vivências. É de hoje este mundo fechado onde vivem as personagens do livro e histórias como esta são bem mais abundantes do que se possa imaginar, na aldeia como na cidade, na casa escura e húmida de onde o Inverno parece nunca querer ausentar-se, como no confortável apartamento debruçado sobre a praia. Com uma escrita segura e firme, num todo de enorme coerência, Carla Pais oferece-nos uma pérola literária que importa guardar num lugar muito especial. Um livro que abre o ano de 2024 sob os melhores auspícios.

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