Páginas

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

LIVRO: "O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo"



LIVRO: “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo”,
de Djaimilia Pereira de Almeida
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Outubro de 2023


“Escrevo perseguida. Como se, na esquina, fosse de novo aparecer o velho senhor guineense que me chamou puta no metro, por eu ter um namorado branco. ‘Sua puta, aprendeste com a tua mãe!’ Esse senhor caminha pela minha página, por todas as páginas que escrevo. Estas linhas, quaisquer linhas que escreva, vão em passo rápido, embuçadas, a fugir dele e dos seus berros.”

O final do ano trouxe com ele “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo”, pequeno-grande livro a merecer a maior atenção. Neste conjunto de três ensaios - através dos quais Djaimilia Pereira de Almeida reflecte sobre o acto de escrever com a consciência de ser escritora e ser negra -, a premissa que serve de título ao livro surge acompanhada de um vasto leque de questões, a primeira das quais se prende com o tempo presente: um tempo que lembra “a cada livro, a cada linha”, que, há poucas décadas, seria impensável este seu modo de vida. Não sendo a única, esta constatação é particularmente significativa, porquanto nos obriga a olhar para a nossa sociedade e para nós próprios, para o racismo estrutural que deforma ideias e valores, e a equacionar aquilo que, eventualmente, nunca equacionámos. O que pensava, ou imaginava, ou via ou sentia uma preta era algo que não interessava a ninguém no tempo dos nossos avós ou mesmo dos nossos pais. O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo connosco? Será este um assunto a merecer a nossa atenção, o nosso tempo?

Três textos, portanto. Três ensaios que se integram e harmonizam, sujeito e complemento uns dos outros. Três formas de pensar a escrita nas dimensões do tempo, do espaço e da pessoa, com uma firme certeza: “Não vivo de escrever, mas escrever é quem sou.” É assim que Djaimilia Pereira de Almeida guia o leitor por intermédio de reflexões de uma universalidade inquestionável. Desde logo a cor da pele, tratada como um segredo pela parte branca da família, “tabu invisível” que apenas com a publicação do seu primeiro livro – “Esse Cabelo”, Ed. Teorema (2015) – deixou de o ser. Também o preconceito que levanta muros entre brancos e negros (“Mas as pretas agora já fazem telenovelas?”). Ou ainda o ser negra e escrever aquilo que se é, sem que isso possa ser visto como uma moda, uma tendência da estação, um objecto de mercado. Questões, dúvidas, reflexões que partem do texto original e procuram desenvolvimento num novo texto intitulado “A minha imaginação não se distingue da minha identidade”, ensaio a duas vozes, na verdade a transcrição do diálogo entre a autora e a poetisa e tradutora brasileira Stephanie Borges.

O derradeiro ensaio intitula-se “A restituição da interioridade” e é o texto da conferência apresentada no ano passado na New York University, onde Djaimilia Pereira de Almeida é professora, aqui numa tradução de Vasco Gato. O assunto é, ainda e sempre, a escrita, mas a visão da autora expande-se do individual para o colectivo. É tempo de falar da supressão da interioridade negra por via da opressão colonial, uma interioridade que, ao contrário dos objectos culturais e peças de arte saqueadas que jazem nos museus do Ocidente, não pode ser devolvida. “A sua restituição é missão nossa”, afirma a autora, desenvolvendo algumas ideias que consubstanciam a sua determinação. O caminho está a ser feito por escritores, artistas, académicos, cineastas, jornalistas, activistas, casos de Zia Soares ou Hirondina Joshua, Pedro Costa ou Isabel Zuaa, Welket Bungué ou Itamar Vieira Junior. As personagens criadas por Djaimilia Pereira de Almeida e que povoam as suas obras estão lá para o confirmar. Através delas, o leitor despe-se de certezas e mergulha no que a interioridade de alguém pode ter de mais específico, naquilo que é “a dignidade categórica de se ser pessoa.”

Sem comentários:

Enviar um comentário