LIVRO: “O Macaco Bêbedo Foi à Ópera - Da Embriaguez à Civilização”,
de Afonso Cruz
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Maio de 2019
“A loucura está ao alcance de qualquer pessoa enquanto exista um bar na vizinhança. O álcool pode ser a porta de entrada para a necessária demência, temporária como convém. A jovialidade das ideias depende dessa revolta contra a solidez do mundo e, se a loucura não é um talento, pode ser provocada. Bastam umas garrafas, porque ela pode ser engarrafada. Viver essa loucura é efectivamente um retorno à infância. Não é por acaso que o bêbedo anda de quatro como as crianças.”
Ao contrário da generalidade dos livros da colecção Retratos da Fundação, cuja abordagem aos mais variados temas é feita de um ponto de vista factual, quase diria jornalístico, “O Macaco Bêbedo Foi à Ópera - Da Embriaguez à Civilização” lança o leitor no domínio das hipóteses, mais do que no das certezas. A aposta num registo onde a filosofia, a sociologia e a religião se misturam com as ciências exactas, mostra-nos um Afonso Cruz igual a si próprio, ele que já nos tinha brindado com um conjunto de livros onde o real e o espiritual se entrecruzam, como é o caso dos excelentes “Jalan, Jalan” ou “Jesus Cristo Bebia Cerveja”. Neste livro editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o autor propõe-se abordar várias questões relacionadas com o álcool, não tanto sobre o facto de ser este um problema preocupante no nosso país – onde o consumo per capita se situa acima da média dos países da OCDE e se começa a beber aos 13 anos –, antes dando a ver a sua influência na própria evolução do homem e a forma como a sua utilização serviu de alicerce a importantes civilizações.
Antes de ter criado as plantas e os animais – o último dos quais o Homem –, Deus criou os Céus e a Terra, assim lemos nos Génesis. É justamente o Universo que Afonso Cruz começa por espreitar, trazendo-nos a evidência científica de que “gigantescas nuvens de metanol, etanol e álcool vinílico – estendendo-se por milhares de milhões de quilómetros – foram localizadas no espaço interestelar e em sistemas estelares envolventes”. “Talvez o ‘lácteo’ da nossa galáxia não seja o baptismo mais apropriado”, diz a propósito, mostrando um apurado sentido de humor que se espalha pelos catorze capítulos que compõem o livro. A questão, porém, não é meramente cosmológica e a possibilidade de termos abandonado as árvores e alcançado o bipedismo à conta do álcool deve ser tida em grande conta. Fruta madura, perfume alcoólico, açucar, energia, coleta, armazenamento… O processo está em marcha e dele não resultam, apenas, a postura erecta e a oponência do polegar. A acumulação de gordura no organismo resulta em obesidade e conduz às doenças cardiovasculares, assim como o acúmulo de energias como a lenha, o carvão, o petróleo, a energia eléctrica e nuclear estão na base da economia à escala mundial.
Factuais ou meramente especulativas, as premissas sobre as quais assenta “O Macaco Bêbedo Foi à Ópera - Da Embriaguez à Civilização” vão desfilando a cada capítulo, prendendo a atenção do leitor graças a uma escrita perspicaz e à oportunidade das questões que o assunto levanta. São dezenas as fontes citadas, da Epopeia de Gilgamesh (texto em forma de poema escrito pelos Sumérios há quatro mil anos) a “O Macaco Nu”, de Desmond Morris. Num capítulo intitulado “Jesus Cristo bebia cerveja?”, Afonso Cruz inverte o sentido da questão e pergunta-se se “poderia Jesus Cristo ter evitado beber a mais difundida e importante das bebidas do seu tempo.” Noutro, nota que “o andar do bêbedo tem a particularidade de ser a menor distância entre um copo de cerveja e a casa de banho”. Noutro, ainda, persegue Erasmo de Roterdão e o seu “Elogio da Loucura” e lembra que “a loucura está ao alcance de qualquer pessoa enquanto exista um bar na vizinhança”. O último capítulo faz da questão cultural a “pedra de toque” e diz-nos que saber olhar um livro ou uma peça de teatro, um filme ou uma pintura é uma questão de cultura, como o é a apreciação e valorização de uma bebida alcoólica. Um belo ensaio a merecer um brinde.
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