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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

CINEMA: “Rosinha e Outros Bichos do Mato” 



CINEMA: “Rosinha e Outros Bichos do Mato”
Realização | Marta Pessoa
Argumento | Rita Palma, Marta Pessoa
Fotografia | Aurélio Vasques
Montagem | Rita Palma
Interpretação | Paulo Pinto, Binete Undonque, Marta Pessoa, Rita Palma, Alunos da Escola Profissional de Marvila, Grupo Etnográfico de Areosa
Produção | Marta Pessoa, Rita Palma, João Pinto Nogueira
Portugal | 2023 | Documentário, História | 101 Minutos | Maiores de 12 Anos
Cinema Trindade – Sala 1
24 Jan 2024 | qua | 14:10


“Muita gente conserva uma ideia imprecisa das colónias, mantida através da recordação incompleta das lições aprendidas mecanicamente nas escolas. Tem-se uma vaga impressão do que os documentários do cinema nos relatam, dum modo geral, da vida colonial. É triste confessá-lo. Pois bem: a Exposição que no Palácio de Cristal se vai efectuar – dentro em pouco uma realidade consoladora – vai agitar animadamente a consciência das populações nortenhas; vai provocar a criação e o desenvolvimento do sentimento colonial. Com argumentos incontestáveis, esclarecidos num sentido prático, convencerá o País da utilidade de manter e desenvolver as províncias ultramarinas não só sob a faceta moral e política como pelo aspecto espiritual e económico.”
Mário de Figueiredo, “Ultramar”, Orgão Oficial da I Exposição Colonial, Ano I, Nº. 1 (1 de Fevereiro de 1934)

Recuar no tempo oito décadas, espreitar um regime e os seus valores, perceber o que chegou aos nossos dias do vasto império pluricontinental português e lançar a reflexão e o debate sobre o assunto será, porventura, o objectivo de “Rosinha e Outros Bichos do Mato”, o mais recente filme de Marta Pessoa. Ponto de partida do documentário, a I Exposição Colonial Portuguesa, inaugurada no Palácio de Cristal, no Porto, em 16 de Junho de 1934, leva-nos ao encontro do “primeiro grande acto de propaganda colonial na metrópole”, dando a ver aqueles que, como animais, foram “caçados” e apartados dos seus, para serem exibidos num jardim zoológico humano como expoentes de estranheza e exotismo. Entre as cerca de três centenas de pessoas trazidas das colónias, encontramos uma jovem mulher guineense, do grupo étnico balanta, a quem chamaram Rosinha e cuja identidade e história a realizadora irá perseguir. Na mulher-objecto para publicidade em que Rosinha se tornou, na sua exibição em capas de revistas, na erotização da sua imagem ou na sugestão da disponibilidade do seu corpo, descobrimos a perversão, a violência e o cinismo da cartilha do Estado Novo, cujo eco perdura até hoje.

Baseado em imagens de arquivo, fotografias de álbuns pessoais ou institucionais, jornais de época e uma vasta bibliografia relativa à história do colonialismo português, o filme começa com a frase “Portugal não é um país racista”, deixando em aberto se se trata de uma afirmação ou de uma interrogação. Marta Pessoa desenvolve o assunto com rigor e uma enorme sensibilidade, oferecendo ao espectador a possibilidade de ser ele mesmo a julgar o sentido da frase e a fazer o seu próprio juízo sobre uma ferida longe de estar cicatrizada. “Pessoas acima de bichos; brancos acima de negros; homens acima de mulheres; o regime acima de todos, acima de tudo”, são sentenças que impõem a sua força e cuja inscrição no nosso ADN parece confirmar-se a cada dia, tantas e tão trágicas as consequências de atitudes supremacistas que inundam os jornais e pintam de vermelho-sangue o nosso quotidiano. Há, por outro lado, uma tentativa de branqueamento da História no que ao colonialismo diz respeito, o qual é praticamente ignorado nos manuais escolares e programas curriculares do Ensino Básico e Secundário. A este propósito, são eloquentes os testemunhos dos alunos de uma escola em Marvila, que preenchem uma parcela do filme.

Ao enigma que envolve a frase inicial, junta-se uma espécie de desconcerto ao escutarmos o diálogo entre Marta Pessoa e Rita Palma sobre se “faz sentido começar o filme assim [?]”. A explicitação das dúvidas quanto à sequência do documentário e ao seu ritmo é algo que se repetirá, oferecendo ao espectador a possibilidade de, ele próprio, penetrar na feitura do filme, perceber-lhe a lógica mas também o risco que se abriga por detrás do arrojo experimentalista. De resto, de um ponto de vista meramente formal, “Rosinha e Outros Bichos do Mato” é um objecto fascinante, que combina na exacta medida o documento e a (tentativa da) sua descodificação. O filme que ilustra aquilo que foi a I Exposição Colonial Portuguesa e que chegou aos nossos dias sem som abre espaço a que o esforço da propaganda do Estado Novo se faça ouvir através da leitura de textos publicados nos jornais da época. As palavras originais seriam outras, mas não o seu sentido, a cartilha fascista como um tenebroso espelho difícil de olhar. O filme atinge o brilhantismo com as sequências finais, os animais empalhados num museu a servirem de contraponto aos seres humanos expostos como alimento à curiosidade do visitante. Uma excelente forma de recuperar a memória, promover o debate, honrar os valores da liberdade e da democracia e festejar Abril.

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