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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

CINEMA: "A Zona de Interesse"



CINEMA: “A Zona de Interesse” / “The Zone of Interest”
Realização | Jonathan Glazer
Argumento | Jonathan Glazer, baseado no romance de Martin Amis
Fotografia | Lukasz Zal
Montagem | Paul Watts
Interpretação | Christian Friedel, Sandra Hüller, Freya Kreutzkam, Ralph Herforth, Max Beck, Ralf Zillmann, Imogen Kogge, Stephanie Petrowitz, Nele Ahrensmeier, Marie Rosa Tietjen, Johann Karthaus, Daniel Holzberg, Medusa Knopf, Luis Noah Witte
Produção | James Wilson, Ewa Puszczynska
Reino Unido, Estados Unidos, Polónia | 2023 | Drama, História, Guerra | 105 Minutos | Maiores de 12 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 13
21 Jan 2024 | dom | 14:25


O ano é o de 1943 e o lugar um dos mais tenebrosos à face da terra: Auschwitz. Mas na belíssima moradia onde Hedwig e Rudolf Höss vivem com os seus cinco filhos, e cujos bem cuidados jardins confinam com os muros do campo de concentração, reina a calma e a ordem. Um batalhão de criados cuida para que tudo permaneça impecável, na mesa farta não faltam os bolos e as guloseimas e o jardim, com piscina e uma bela estufa, é lugar de permanente diversão e convívio. Uma família nuclear perfeita, portanto, que vive em comunhão e sabe tirar o melhor partido dos espaços de piquenique que as margens do Soła proporcionam, banhando-se no rio, colhendo frutos silvestres e dando longos passeios a cavalo. É sabido que não se pode ter o melhor de dois mundos e é impossível não chegar aos seus ouvidos os berros dos guardas, o ladrar dos cães, os gritos dos prisioneiros e os tiros isolados que vêm do lado de lá do muro, da mesma forma que não se consegue evitar que, em certas ocasiões, o vento faça cair sobre os campos as cinzas dos que acabam os seus dias nos fornos crematórios. Mesmo assim, apetece dizer que não há vida como a dos Höss.

Adaptado livremente do romance homónimo de Martin Amis (Quetzal Editores, Junho de 2015), “A Zona de Interesse” demarca-se da generalidade dos filmes sobre o Holocausto por se impedir de mostrar quaisquer imagens chocantes ou sequências violentas. Embora não seja exibida na tela, isto não significa que a brutalidade esteja ausente do filme. Diria mesmo que está lá da pior forma, imiscuindo-se constantemente no imaginário do espectador através do trabalho de som, perturbador na sua omnipresença, demolidor no que revela sem revelar. É como se estivéssemos perante dois filmes totalmente diferentes, um que se vê e outro que se ouve: De um lado o sentido de normalidade, do outro a vivência do horror; de um lado a tranquilidade da vida familiar, do outro o extermínio em massa de vidas humanas. De tonalidades gélidas, a fotografia de Lukasz Zal acentua esta estranheza, reforçada com a assustadora música de Mica Levi a demarcar as várias partes do filme. Nota ainda para a forma como é capturada a banalidade do mal, as personagens agindo com toda a naturalidade, como se não estivesse a acontecer um genocídio do outro lado do muro.

Naquele que será, porventura, o momento-chave do filme, Rudolf Höss “espreita” o futuro pelo estreito óculo de uma porta escura, a mesma porta que abre finalmente passagem ao espectador para o interior do Campo de Concentração. À sua espera está aquele que é hoje o Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, inscrito no Património Mundial da UNESCO e visitado anualmente por mais de dois milhões de pessoas. É lá que acompanhamos os trabalhadores concentrados nas tarefas de limpeza dos vários espaços, depois de mais um dia de abertura ao público. Höss não consegue evitar as náuseas e os vómitos ao adivinhar aquilo em que o “seu” campo se irá tornar no futuro. É a banalização do mal, patente na descontração de quem aspira o chão de uma câmara de gás ou limpa os vidros por detrás dos quais repousam sapatos, óculos ou malas de viagem de tantos inocentes, e se prolonga em selfies descontraídas dos visitantes ou em vistos nas “check-lists” dos que coleccionam locais turísticos e para quem é indiferente estar num Casino em Las Vegas ou num local onde mais de um milhão de seres humanos foi alvo de extermínio. Sem ter a necessidade de explicar nada, “A Zona de Interesse” é uma lição de História. E uma lição de vida.

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