CONCERTO: Ute Lemper
Centro Cultural de Belém - Grande Auditório
03 Dez 2023 | dom | 21:00
Visitante assídua do nosso país, Ute Lemper regressou a Lisboa e ao palco do CCB para um novo concerto. Trouxe na manga o seu mais recente trabalho discográfico, “Time Traveler”, dispondo-se a contar, em capítulos particularmente intimistas, uma invulgar história de vida, marcada pelo grande amor ao teatro, à música e à poesia. Uma viagem no tempo que abraça, com igual emoção, Berlim, Paris e Nova Iorque, fundindo Kurt Weill e Bertolt Brecht, Pablo Neruda e Charles Bukowski, Jacques Brel e Marlene Dietrich. Uma viagem que é também a revisitação de quarenta anos de uma carreira recheada de sucessos, construída na base de um invulgar talento para a representação, de uma voz assombrosa, de uma forte presença em palco, de um sentido do espectáculo como se da própria respiração se tratasse. O percalço sofrido logo no início do concerto - uma queda aparatosa no palco - deu a ver esse lado lutador da cantora, capaz de ultrapassar as maiores adversidades com uma boa dose de humor e muito fair-play: “Este é um grande ano para mim, fiz 60 anos e caí nas escadas”, disse, ainda mal refeita do susto.
Tema inaugural do seu novo disco, “Time Traveller” lançou pontes entre passado e futuro, abrindo espaço a um conjunto de memórias que o próprio tempo tem ajudado a seleccionar. Recuamos aos anos 1980, a uma Berlim dividida entre Leste e Ocidente, o muro por todo o lado como o mais terrível dos estigmas. Lá encontramos a jovem Ute que todas as manhãs segue de bicicleta para os ensaios de teatro, ao encontro dos ambientes de cabaret dos anos 20, a cena musical dominada pela inteligência e integridade de Weill e Brecht de quem escutamos “Alabama Song” e “Pirate Jenny”. Antes de embarcar em nova viagem, Ute Lemper apresentou a sua “família” - Vana Gierig (piano), Mimmo Campanale (bateria) e Giuseppe Bassi (contrabaixo) - e mencionou Lisboa e as muitas vezes que que aqui esteve, fazendo questão de incluí-las nas suas mais gratas recordações. Paris, que a cantora visitou pela primeira vez em 1987, traz à memória a música e a poesia de Jacques Brel, Serge Gainsbourg, Barbara, Boris Vian, Claude Nougaro ou Léo Ferré. É neles que se inspiram “Magical Stone” e “Envie d’Amour”, este último onde se sente a forte presença de Edith Piaf e do imortal “La Vie En Rose”.
Momento alto do concerto, a recriação da longa conversa telefónica com Marlene Dietrich, prendeu a atenção do público. A cantora cede lugar à actriz e o seu mundo alarga-se na reconstituição do diálogo ou em canções como “Just a Gigolo”. Ute Lemper não usa aqui uma máscara, mas mergulha no panóptico da sua própria vida, traduzindo em palavras e música as suas alegrias e dores, os sonhos e a sua concretização. Sentida homenagem ao “anjo azul”, Ute cantou “Where Have All The Flowers Gone”, lembrando o fugaz momento em que Marlene Dietrich voltou a pisar solo alemão, na Gala da UNICEF que teve lugar em Dusseldorf, em 1962. Girando incessantemente em torno do seu próprio eixo, Ute Lemper continua a fundir passado e presente, recuando aos tempos da Segunda Guerra Mundial e aos guetos onde os artistas, apesar das terríveis condições em que viviam, continuavam a escrever, a pintar, a compor. O último “acto” é uma espécie de regresso ao ponto de partida. Um regresso no qual a jovem e a menos jovem Ute se redescobrem nos seus próprios segredos. A emoção tomou conta do público com “Avec Le Temps”, de Léo Ferré, mas também com “The Gift”, o último tema do álbum e que fechou o concerto da melhor maneira, nessa combinação única com as palavras de Bob Dylan e do seu “Blowin’ in the Wind”. Memorável.
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