LIVRO: “A Selva”,
de Ferreira de Castro
Livraria Civilização, 1ª. edição (1930)
Ed. Cavalo de Ferro, 6ª. edição, Junho de 2022
“ - Que têm eles? Ah, seu moço, bem se vê que você é mesmo “brabo”. Está ouvindo, Agostinho? Que têm eles se nós não trabalhamos? Se nós não trabalhamos, seu Juca ganha menos, porque é borracha que deixa de vender e demora mais a receber a conta que nós lhe devemos. Percebe? É para a gente não ficar na rede que seu Caetano, seu Alípio ou seu Balbino se apresentam aí quando não se espera e, se nós estamos de perna estendida, dizem coisas que um homem não gosta de ouvir e, depois, vão fazer queixa a seu Juca.”
28 de Outubro de 1914. Um rio largo e negro como a noite que o cobre, um barco cujos contornos mal se distinguem e que começa a descer na corrente, as margens que se afastam e, com elas, dois barracões e três cabanas, “únicos abrigos humanos naquele rasgão de floresta”. No barco segue Ferreira de Castro. Tem dezasseis anos e vive no seringal há quatro. Confrontado desde a primeira hora com a violência que se esconde na beleza luxuriante da selva amazónica, experimentando toda a espécie de perigos, dando-se conta da rudeza e mesquinhez que o coração do homem pode albergar, sente-se como num cárcere sem pena fixada. Ao longo do tempo passado na selva, não houve um só dia que não desejasse evadir-se, libertar-se, fugir. O momento chegara e o autor recorda-o como o fim de um tempo e o início de um outro, um tempo de “conflito sentimental, doloroso e cheio de perplexidades”, do qual, quinze anos após este episódio, nascerá “A Selva”, “um clássico do nosso tempo, um desses poucos livros definitivos”, como o classificou Jorge Amado.
Vívida e sentida, a narrativa de “A Selva” é, ao mesmo tempo, hino e desdita, exaltação e horror, fascínio e martírio. Com um cunho marcadamente autobiográfico, o livro alcança a dimensão de uma epopeia que irmana os seringueiros em torno do trabalho de extracção do látex e do ambiente de convivialidade e entreajuda face às adversidades, mas também da sua história de resistência e de luta contra a exploração e a miséria a que foram sujeitos, particularmente no período em que o livro decorre e que corresponde ao declínio do ciclo da borracha. Seringueiros que partilham com essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva amazónica a dedicatória do livro e a quem Ferreira de Castro se refere como “meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extracção da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência.” Do contraste entre uma selva a ressumar de vida e o peso da opressão e da fome, nasce um livro que canta a natureza, ao mesmo tempo que acompanha a tremenda caminhada dos deserdados em busca de pão e de justiça.
Fecunda experiência de vida vertida em prosa, “A Selva” coloca no centro da acção um português de 26 anos de nome Alberto, expatriado devido às suas inclinações monárquicas e que é convidado pelo tio a tentar a sua sorte na Amazónia, o seu novo mundo, com a promessa de enriquecimento fácil. A realidade mostrar-se-á bem diversa e só as grandes voltas do acaso permitirão ao jovem libertar-se de um círculo vicioso que ameaçava retê-lo para sempre. Percursor do movimento neo-realista, Ferreira de Castro oferece-nos a visão de uma natureza completamente nova para muitos, juntando à garça nívea, ao jaburu tristonho, ao magoari pensativo, ao urubu ladino, ao temeroso puraqué ou à esquiva onça, as margens húmidas dos igapós, os raizedos inverosímeis, a exuberância das orquídeas, os pingos grossos da chuva ou o estalar do trovão. Mas é na descrição das relações humanas que o livro alcança a sua dimensão universal, o drama dos homens perante as injustiças de outros homens como parcela da grande dor humana. De leitura obrigatória.
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