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domingo, 26 de novembro de 2023

LIVRO: "Revolução"



LIVRO: “Revolução”,
de Hugo Gonçalves
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Outubro de 2023


“Os turistas revolucionários achavam Lisboa pitoresca. Para Maria Luísa, a cidade era a pista de um circo indigente. Com o espírito quebrado e a mão estendida durante décadas, os portugueses continuavam a dar pinotes e a precisar de um domador. Que mansidão era aquela? Como podiam esquecer o que lhes tinham feito? Porque seguiam com medo? Como saíam da opressão do fascismo para a escravatura do capitalismo?”

O livro “vai alto” quando, após anos atribulados que marcam de forma indelével a família Storm e a arrastam para uma completa desagregação, um jantar de aniversário serve de pretexto para voltar a juntar à mesa praticamente todos os membros da família. Socorro-me da sinopse para contar que “o epicentro do colapso tem origem muitos anos antes, entre o fim da ditadura e os primeiros tempos da revolução. Maria Luísa, a filha mais velha, opositora clandestina do regime, é perseguida pela PIDE. Frederico, o filho mais novo, está obcecado em perder a virgindade antes de ser mobilizado para a guerra colonial. E Pureza, a filha do meio, vê os seus sonhos de uma perfeita família tradicional despedaçados pelo processo revolucionário em curso.” São os “violentos e excessivos meses do PREC, quando a esperança e o medo dividem os portugueses, separando filhos e pais, colocando irmãos em lados opostos da barricada.”

Nas suas quase quinhentas páginas, “Revolução” mergulha, de forma intensa e vívida, na história de um país ávido de pôr fim aos conflitos no Ultramar e de abraçar os valores da liberdade e da democracia. Um país refém da desconfiança e do medo que o marcaram ao longo de quase meio século de ditadura, dado a um perigoso extremar de posições que o aproximam perigosamente da guerra civil, repleto de figuras totalmente inábeis na condução dos seus destinos. Entretanto, meio século passado sobre a revolução dos cravos, esta revisitação de meses e anos particularmente conturbados tem o mérito de, na forma de um romance, celebrar Abril, olhando-o a uma distância razoável do ponto de vista histórico, mas não o suficiente para que o desconforto não assalte o leitor, ao encontrar em si os ecos de um tempo que está longe de ter sido brando e cavalheiresco como se faz crer, o tempo de uma revolução feita de cravos que cedo murcharam.

Repleto de episódios marcantes - os mais curiosos serão tentados a interromper a leitura por variadíssimas vezes, seja para confirmar a identidade de uma figura que se atravessa no livro, para “assistir” a um comício em Almada do então primeiro-ministro Vasco Gonçalves ou apenas para recordar a banda sonora da série “Bonanza” -, “Revolução” revela a enorme preocupação de Hugo Gonçalves em manter-se fiel à verdade histórica, ao mesmo tempo que mostra a inteligência e sagacidade do autor em fazer reviver, na pele dos elementos de uma mesma família, os momentos mais significativos em torno do “dia inicial inteiro e limpo”. Particularmente credíveis, as personagens de Maria Luísa e de Diogo, cunhados, ambos figuras de proa de partidos extremistas, ela de esquerda, ele de direita, mostram que, ao contrário de militarem em extremos opostos de um espectro político linear e contínuo, de facto acabam por se aproximar e mesmo por ser tocar. Mais do que isso, porém, eles provam o quanto de pernicioso e nefasto subjaz na radicalização de propostas e de tomadas de posição. Uma mensagem para os dias de hoje.

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