EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Não contes à mãe”,
de Délio Jasse
Curadoria | Helena Mendes Pereira e Arnold Braho
Encontros da Imagem de Braga 2023
Zet Gallery
30 Set > 02 Dez 2023
Partamos do princípio que uma pequenina janela de tempo se abre nos seus afazeres em Braga, permitindo-lhe visitar um dos vários núcleos de exposições da presente edição dos Encontros da Imagem. Pela quantidade de artistas que albergam, a Galeria do Paço ou a Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva afiguram-se como escolhas óbvias. Só que há uma outra opção, pessoalmente bem mais interessante e que elevo à condição de imperdível. Trata-se de “Não contes à mãe”, do artista visual Délio Jasse, e que pode ser visitada na Zet Gallery. Com curadoria de Helena Mendes Pereira e de Arnold Braho, a mostra é um documento vivo sobre o passado colonial português, recuperando histórias e memórias que permitem entrever uma realidade bem diferente daquela ditada pela cartilha do regime. É o contar a história “do ponto de vista de quem não chegou”, pondo o dedo na ferida das políticas colonialistas e chamando a primeiro plano os traumas do pós-colonialismo, enquanto tema descentralizado que questiona a construção de identidades.
Délio Jasse nasceu em Angola e, na maioridade, deixou o seu país em plena guerra civil e veio para Portugal com o objetivo de estudar artes. Sem ver reconhecida a nacionalidade portuguesa, apesar do pai ser cidadão português, Délio cai nas malhas da burocracia, sendo obrigado a enfrentar um longo processo de regularização da sua situação. Começa, então, a interessar-se pelos arquivos e por encontrar todo o tipo de documentos que façam referência às questões da identidade, acabando por encontrar na Feira da Ladra e noutros locais um verdadeiro manancial de objectos que vão alimentando a sua curiosidade. Na sua grande maioria, são documentos relativos, não apenas aos retornados, mas, sobretudo, à situação concreta e invisível dos nativos das ex-colónias que, durante o Estado Novo, parecem não contar para a estatística. Isto leva-o a “questionar-se sobre a ausência da representação de negros nas fotografias como se estes não existissem no território, percebendo-se o privilégio do fotógrafo que apenas registava o que era digno de registo”.
Passaportes, certificados de propriedade de terras, cartas íntimas, fotografias de família, ou mesmo carimbos e instrumentos de validação, o artista colecionou ao longo da sua carreira uma multiplicidade de fragmentos que se perderam e que depois se reencontraram. (…) É deste inconsciente coletivo, escondido nas fotografias, nas pequenas notas contidas nos versos das mesmas, que parte o trabalho de Délio Jasse que, como um arqueólogo, cruza os diferentes vestígios, procurando reescrever a história, não inibindo a violência que as narrativas oficiais da colonização portuguesa em África sempre procuraram ocultar ou, simplesmente, desvalorizar. O resultado é um arquivo urbano do que existia e do que agora foi substituído, em que os fantasmas do passado emergem das arquiteturas do presente, e os negativos impressos em papel vegetal se misturam como que para imobilizar uma passagem de estado.
As histórias estão lá, nas paredes de salas e corredores da Zet Gallery, para serem “lidas” e entendidas como partes da nossa história comum. Nítidas ou desfocadas, inocentes ou transgressoras, espelham-se em seis capítulos que nos falam de privilégios e poder, trocas e mercados, instituições e modelos, protesto e resistência, império e metrópole, legados e memórias. Nelas se leem as problemáticas das diásporas, as trajectórias num tempo pós-colonial e as relações colonizador-colonizado que ainda persiste de maneira informal nas relações sociais e institucionais. Com uma disposição extraordinariamente pensada e executada, a mostra tem na fotografia o seu principal suporte, mas vive muito da instalação na criação de ambientes propícios à fruição do material expositivo. Como disse acima, trata-se de uma exposição imperdível, que nos lembra que “não há futuro sem conhecimento do passado e, sobretudo, não faremos melhor no futuro se não formos capazes de recontar e de actualizar o que foi o passado.”
Sem comentários:
Enviar um comentário