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sexta-feira, 27 de outubro de 2023

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #76



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #76
Com | Rodrigo Rebello de Andrade, João Niza Ribeiro, Guilherme Branquinho
Apresentação | Tiago Alves
Escola de Artes e Ofícios
26 Set 2023 | qui | 21:30


Para os espectadores mais familiarizados com a dinâmica do Shortcutz Ovar, não é novidade a existência de um fio condutor a ligar os filmes de cada sessão. Neste aspecto, afigura-se extraordinário o trabalho dos programadores face à variedade de géneros e de temas que, como peças de um puzzle, se oferecem ao “encaixe”. Há uma excepção, porém, e essa recai sobre a sessão referente ao mês de Outubro e que decorre sob os bons auspícios do Halloween. Aqui não há que saber: Mistério, terror, horror e fantasia fecham o espectador nos mais claustrofóbicos espaços da mente, a imagem e o som carregam-se de efeitos especiais, o sangue e as vísceras invadem o ecrã e a noite é dos mortos-vivos. Não foi exactamente isto que se passou na tela da bonita Escola de Artes e Ofícios, mas as propostas para esta penúltima sessão da presente temporada mostraram o quanto um policial, uma ficção distópica ou um thriller urbano podem estar tão próximos do género e sub-géneros do terror. As curtas aí estão, como que a contrariar a ideia de que no nosso país não se cultiva o cinema de género. A ansiedade e a tensão foram denominadores comuns dos filmes exibidos, a inquietação tomou conta do público e houve até quem saltasse da cadeira.

“Encoberto”, de Rodrigo Rebello de Andrade, abriu a sessão com um drama psicológico na forma de um policial. Filme de Escola, primeira obra de um jovem realizador que vem de terminar o curso na Escola Superior de Teatro e Cinema, “Encoberto” surpreende pelos meios envolvidos e pela desenvoltura do enredo, levando-nos ao encontro de um bando que se prepara para assaltar uma joalharia. Nos momentos que antecedem o golpe, a história que se abriga na carta de um pai à filha abre lugar à ligação entre dois elementos do grupo e traz para primeiro plano o quanto de humanidade pode abrigar o coração de um criminoso. Mais do que a história de um assalto frustrado, é a relação entre estas duas pessoas que se impõe aos olhos do espectador, levando-o a valorizar a emoção sobre a acção. Melhor Curta-Metragem de Ficção nos Prémios Sophia Estudante 2023, semifinalista dos prémios para estudantes da Academia de Cinema dos Estados Unidos (que atribui os Óscares), “Encoberto” mereceu um forte aplauso do público e, apesar de algumas opções discutíveis, obriga-nos a estarmos atentos ao nome de um realizador cujo futuro se abre de forma promissora.

De João Niza Ribeiro, seguiu-se “Raticida”, o filme que mais próximo esteve do grande tema da noite. À semelhança de outros (poucos) filmes que têm passado pelo Shortcutz Ovar, este é daqueles que seriam merecedores de uma crónica exclusiva, tantos e tão bons são os motivos para falar dele. Isso não vai acontecer, mas resumirei a questão começando pela cidade que nos é mostrada de início e que, mesmo sem referências, o espectador sabe que é o Porto a passar diante dos seus olhos. Há depois a nota de desconcerto num filme de época só na aparência, já que não poderia ser mais actual. Há, enfim, todo o trabalho admirável com não actores e o lado documental que se imiscui na mais pura e dura das ficções. É entre os demónios de Stavrogin e “a grandessíssima puta que o pariu” que se move “Raticida”, cuja acção nos faz recuar quase um século, aos tempos da “Grande Depressão” e a esse notável “Ratos e Homens”, de John Steinbeck. Estabelecer um paralelismo com os tempos actuais, com um Porto turistificado e gentrificado, um Porto que é cada vez mais o dos marginalizados e excluídos e que vê o seu carácter e identidade serem alvo de um verdadeiro assassinato, pode ser um exercício do mais puro terror. A prova está em “Raticida”, fábula urbana que nos colhe de surpresa e se oferece em verdade e empatia.

A encerrar a noite, Guilherme Branquinho trouxe-nos uma primeira obra intitulada “Vórtice”, a história de um homem que, após um longo dia de trabalho, enfrenta de novo o drama de encontrar um lugar para estacionar. Só que não está sozinho e o que se afigura um exercício rotineiro, transforma-se numa corrida que põe em causa a própria vida. Sustentado nas vivências de muitos dos habitantes dos bairros lisboetas da Ajuda, Campo de Ourique, Penha de França e outros, o filme vive de uma tensão que vai sendo alimentada ao sabor do pé no acelerador e a cada novo dobrar de esquina. Num jogo de sorte e azar levado ao limite, as ganas e o medo são faces da mesma moeda. Branquinho mostra-se exímio na forma como doseia a acção e como alimenta o drama, convidando o espectador a aceitar a boleia num carro que, em velocidade furiosa, se vê incapaz de se libertar da malha labiríntica onde caiu, dos seus enredos e armadilhas. Mas quanto desta busca de um lugar para estacionar o carro está contido no afã de uma vida em busca de um lugar para estacionar, ela própria, sem ter de enfrentar os dilemas da competição ou da transgressão? Este sentido metafórico, aliás muito bem levantado por um espectador no (privilegiado) momento de conversa com o realizador, toma conta do filme e corre em paralelo com o sentido das decisões de cada um, as mais das vezes “preso por ter cão e por não ter”. O final perfeito de mais uma grande noite de Shortcutz Ovar.

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