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segunda-feira, 7 de agosto de 2023

LIVRO: “Um Ocidente Sequestrado ou a Tragédia da Europa Central”



LIVRO: “Um Ocidente Sequestrado ou a Tragédia da Europa Central”,
de Milan Kundera
Título original | “Un Occident Kidnappé” (Éditions Gallimard, 2021, para os textos de Pierre Nora e de Jacques Rupnik)
Textos originais | “Discours au Congrès des écrivains tchécoslovaques” (1967); “Un Occident kidnappé ou la tragédie de l’Europe centrale” (1983)
Edição | Cecília Andrade
Tradução | João Duarte Rodrigues
Ed. Publicações Dom Quixote, Julho de 2023


“A Europa Central queria ser a imagem condensada da Europa e da sua rica variedade, uma pequena Europa arquieuropeia, modelo miniaturizado de uma Europa das nações concebida segundo a regra: o máximo de diversidade no mínimo espaço. Como não deveria sentir-se horrorizada pela Rússia que, à sua frente, se baseava na regra oposta: o mínimo de diversidade no máximo espaço?”

Praga, Junho de 1967. A cultura checa vive a sua “idade do ouro”. Escritores, encenadores, dramaturgos, cineastas, rejeitam o servilismo ao regime e as críticas ao chefe do Partido e do estado, Antonin Novotny, fazem-se sentir de forma directa. O semanário dos escritores, “Literární noviny”, faz tiragens de 250.000 exemplares, todos vendidos num só dia. O braço de ferro entre a intelligentsia e o poder agudiza-se. É neste ambiente de enorme tensão que tem lugar o Congresso dos Escritores, espécie de prelúdio àquilo que ficou conhecido como a “Primavera de Praga”. Na posse da palavra, Milan Kundera fala do renascimento da cultura como “o fenómeno mais marcante da realidade checa dos últimos anos” e pergunta: “Estará a nossa comunidade nacional consciente de tudo isto?”.

Mais de meio século nos separa do momento em que estas palavras foram proferidas, mas a sua actualidade é esmagadora. O “fenómeno de massas” que é o turismo, por exemplo, é visto por Kundera como o grande responsável pela redução drástica do peso das pequenas línguas, pondo em causa a própria soberania de países como o seu. Outra passagem significativa tem a ver com o “vandalismo” enquanto “orgulhosa estreiteza de espírito que se satisfaz consigo própria” e deixa um exemplo: “(…) Um adolescente decapita uma estátua num parque porque uma estátua ultrapassa despudoradamente a sua essência humana. E como cada acto de autoafirmação traz satisfação aos homens, fá-lo com júbilo. Os homens que não vivem senão o seu presente descontextualizado, que ignoram a continuidade histórica e que têm falta de cultura são capazes de transformar a sua pátria num deserto sem história, sem memória, sem ecos e isento de qualquer beleza.” Não fará isto lembrar algo que nos é familiar e constitui um dilema dos nossos dias?

O segundo texto serve de título a este livro e foi publicado originalmente na revista francesa “Le Débat”, em Novembro de 1983, quando Kundera já vivia em França [em entrevista ao “New York Times” disse: “Por mil anos, a Checoslováquia fez parte do Ocidente. Hoje, faz parte do império a Leste. Eu sentir-me-ia muito mais desenraizado em Praga do que em Paris”].  Também aqui, a actualidade das considerações é assombrosa, evidenciando a sua inteligência, perspicácia e lucidez. A forma como “cola” o drama da Europa Central - “a parte da Europa situada geograficamente ao centro, culturalmente a Oeste e politicamente a Leste” - ao drama do Ocidente, “que não o quer ver nem se apercebeu do seu desaparecimento” é notável. A viragem política à direita de países como a Hungria, a Polónia ou a Ucrânia, esta última mergulhada numa guerra sem fim à vista, mostram o quão certo estava Kundera nos seus juízos. É nesta região de pequenas nações que “ainda não pereceram” que a vulnerabilidade da Europa, de toda a Europa, se torna mais claramente visível. De leitura imprescindível.

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