LIVRO: “O Quarto do Bebé”,
de Anabela Mota Ribeiro
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Maio de 2023
“Estou cada vez mais encapsulada. Nos primeiros meses do diário, mantinha-me presa aos dias, à vida real, ao país. Ontem foi o dia em que se registaram mais infeções. Quase esqueci o perigo da pandemia. Rejeitámos aquilo que nos dominava nos primeiros tempos. O rio da pandemia encontrou-se com o rio da doença e este engoliu o primeiro. Agora que a minha doença está controlada, temos condições para fazer o movimento inverso e desenvolver uma diferente obsessão. Se nos confinarmos de novo, no inverno, não terei medo de viver. Porque tenho menos medo de morrer.”
12 de Março de 2020. O Conselho de Ministros aprova um conjunto de medidas extraordinárias e de carácter urgente de contenção e mitigação do novo Coronavírus – COVID 19. Encerram-se escolas e discotecas, estabelece-se a limitação das visitas nos lares e adoptam-se normas restritivas em centros comerciais e restaurantes. Proíbe-se o desembarque de passageiros de navios de cruzeiro e é reforçado o regime de protecção social aos trabalhadores. Para tantos de nós, essa quinta feira marca o dia 0 de isolamento. Como a autora deste livro, também nós dissemos: “Estou noutra irrealidade, e tudo parece absurdo, incompreensível, certamente catastrófico. Não tenho a capacidade de me projectar no futuro, alcançar o verão, a normalidade. Estou presa ao imediato, com uma noção estreita e flexível do tempo. Um dia parece-me uma semana.” De ora em diante, “O Quarto do Bebé” irá tomar a forma de um diário. Palavras como isolamento, confinamento, máscara, luvas, quarentena, pandemia, desinfecção ou assepsia tomam conta dos dias. Também nojo e regressão, medo e morte.
“O Quarto do Bebé” não é só um livro sobre a pandemia, antes “O Livro da Pandemia”, de tal forma ela se faz presente nas palavras de Anabela Mota Ribeiro e na forma como traz com ela o absurdo de um tempo que queremos esquecer. Estamos na presença de um exercício autobiográfico de uma enorme coragem e honestidade, humilde, confidente, certamente doloroso, visceral. É fácil encontrarmo-nos nesta “Filha do meu Pai”, regressando a cada dia seu como se fosse nosso, a mesma determinação, a mesma angústia, ora certos de que “vai ficar tudo bem”, ora perdendo a fé na Humanidade e vendo o horizonte cobrir-se das mais negras nuvens. Pedaços de nós que julgávamos esquecidos regressam com uma força inusitada. Voltamos a bater palmas à janela, a desinfectar as compras com lixívia, a condenar os que ousam sair à rua, a comentar o número crescente de vítimas e de gente nos Intensivos, a dizer amém com a Ministra e a Directora-Geral da Saúde a cada medida mais restritiva do que a anterior. Voltamos a ter medo. A chorar os nossos e os outros.
Mas há ainda uma outra dimensão neste “O Quarto do Bebé”, na medida em que a autora se permite partilhar com o leitor um particular momento de fragilidade física. Presos a uma dolorosa realidade, empatizamos mais ainda com a sua verdade e generosidade. Cada nova página faz-nos mergulhar num turbilhão de emoções e sentimentos, obrigando-nos a olhar no nosso mais fundo, ao encontro da nossa própria finitude. Não é um livro catártico, nem para a autora, nem para o leitor. Antes uma lição de vida, cada memória como parte de um todo que somos, um constructo onde nos achamos incompletos e imperfeitos. Repleto de referências literárias - de Susan Sontag a Primo Levi, de Svetlana Alexievich a Machado de Assis -, o livro reserva ao processo de criação literária uma atenção especial. Metaforicamente, o título ganha expressão se pensarmos no livro como algo que nasce e cresce, que faz o seu caminho escapando ao controlo do seu criador. Livro-almofada, livro-tesoura, livro-espelho, uma coisa apenas ou tudo isso ao mesmo tempo, “O Quarto do Bebé” é livro-eu, sério e sábio, que se ama de coração cheio. Um livro essencial.
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