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sábado, 19 de agosto de 2023

VISITA GUIADA: "Passo a Passo"


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VISITA GUIADA: “Passo a Passo”
Capelas dos Passos de Ovar
Encenação e orientação | Leandro Ribeiro
Organização | Câmara Municipal de Ovar
18 Ago 2023 | sex | 18:00


“Um de vós não está limpo!” Estamos no interior da Igreja Matriz, no espaço fronteiro à Capela do Senhor dos Passos, ou do Pretório, unanimemente considerada como a mais rica e sumptuosa das sete Capelas dos Passos, em Ovar, classificadas em 1949 como Imóveis de Interesse Público pelo Governo da Nação. Proferida por uma estranha personagem, encapuzada e vestida de negro, a sentença levantou um certo mal estar entre o grupo, uns e outros olhando-se com desconfiança. Afinal, não há motivos para alarme. As palavras são de Cristo e têm Judas como destinatário, o mesmo Judas que se deixou vender por trinta dinheiros. Está a começar a visita guiada e encenada às Capelas dos Passos e Leandro Ribeiro, banco à ilharga e martelo na mão, será o cicerone ao longo de um percurso no qual assumirá a personagem de Zé dos Pregos. Do Pretório ao Calvário, a Via Sacra far-se-á pelo meio do casario e enfrentando o trânsito de final de tarde. Segui-la é assistir ao cruzamento da História com a memória, do sagrado com o profano, do sério com o risível. “Uma no cravo, outra na ferradura”, Zé dos Pregos irá mostrar-se um excelente conversador, permitindo-se confidenciar aquilo que só ele sabe, sem se coibir de dar umas boas “marteladas” sempre que a situação o exige. Põe-nos a rir. Faz-nos pensar.

Mas voltemos à Igreja Matriz e à Capela do Senhor dos Passos. Nas paredes laterais, em relevo, as cenas da paixão são alvo das primeiras impressões. Enquanto percorremos o olhar pelos quadros de Jesus no Horto, do Beijo de Judas, da Última Ceia ou do Lava-pedes (“lava-piés, para os espanhóis”), escutamos as explicações em torno do diabo na figura de um cão, de um apóstolo sem barba, do beijo entre dois homens (“the kiss, para os ingleses”) ou de Cristo “amarrado” a uma meia coluna (“terá faltado material ao artista para acabar o resto?”). Já no exterior do templo, apresentações feitas, as atenções recaem sobre o Cine-Teatro, ali em frente, cuja construção não foi vista com bons olhos pelo pároco de então. Pelo contrário, o Bispo sentenciou que a Igreja não deveria impedir o progresso, “e assim nasceu o Café Progresso”, afirma Zé dos Pregos, que estava lá na altura e sabe bem como as coisas se passaram. Mas sabe também que o Cine-Teatro foi uma realidade a partir de 1944 e que é hoje uma triste realidade, “encolhido, chapeado e da cor da natureza”. Portanto, “uma martelada para aqueles que não cuidam da salvaguarda do património.”

Dirigimos os nossos passos para o Passo do Horto ou Passo do Senhor Caído por Terra, seguindo um percurso com fundas raízes na tradição. Zé dos Pregos conta que nem sempre as capelas foram como as conhecemos, sendo portáteis nos seus primórdios, “feitas de lona e alugadas na cidade do Porto”. É só no século XVIII (1748) que as Capelas dos Passos começam a ser implantadas na malha urbana, como edifícios isolados, graças ao imposto de um real por cada quartilho de vinho vendido (“sete capelas, tanta estatuária, imagine-se o vinho que se bebia nessa altura”, comenta Zé dos Pregos, enquanto indica, entre as figuras, o cobrador de impostos). Nova martelada, desta feita no “consumo de álcool” e ala para o Passo do Encontro, ao encontro de Maria Madalena e de… Zé dos Pregos, o próprio, com “aquele fatinho, aquelas meinhas bordadas, a camisolinha com golinha de godé”. Afinal um Zé dos Pregos despeitado por não ver correspondido o seu amor por Maria Madalena, que preferiu gastar um frasco de perfume no corpo de um morto quando ele, ali tão próximo, tão vivinho da silva, bem mais precisado estava. E nova martelada, desta vez para aqueles que, com atitudes impróprias, destroem este nosso mundo.

O Passo do Cireneu leva-nos ao encontro de Simão de Cirene, essa figura que auxiliou Cristo a transportar a cruz, “não por vontade própria, mas porque a tal foi obrigado”. Lá estão, ainda, as marcas da polémica intervenção de Iglesias, um restaurador espanhol contratado pelo Município que optou por cobrir os frescos das paredes laterais com tinta branca. Sentindo-se insultado nos seus brios, Zé dos Pregos aconselhou o espanhol a mudar de vida e ele assim fez: Regressou à terra dele, trocou o nome de German pelo de Júlio e dedicou-se à música, por sinal com bastante êxito. Já no Passo da Verónica, Zé dos Pregos chama a atenção para o Santo Sudário que a Verónica apresenta entre mãos. Não é crível que um rosto suado e repleto de sangue se mostre nítido no pano que o enxugou. Daí que Zé dos Pregos considere estarmos perante o “milagre da Selfie”. Mas é contra as mensagens ensaguentadas que passam constantemente nas nossas televisões, particularmente aquelas que nos chegam da Ucrânia, e contra uma Guerra sem fim à vista, que o nosso guia desfere nova martelada.

Antes de seguirmos para o Calvário, ainda uma paragem no Passo das Filhas de Jerusalém, evocando aquelas que, chorando a dor de Cristo, batiam com a mão no peito (“as olheiras têm a ver com a inauguração, na noite anterior, de uma discoteca aqui mesmo ao lado”). Numa aproximação ao teatro de formas animadas, Zé dos Pregos recria um curioso diálogo entre a Samaritana e Cristo, junto à Fonte de Jacob (não me lembro de Zé dos Pregos ter nomeado a fonte, mas é assim que a encontro num fado). Aqui, Zé dos Pregos deixa a martelada para o grupo que o acompanha, convidando aqueles que nunca pecaram a fazê-lo. Enfim, o Calvário, a maior e mais monumental do conjunto de Capelas visitadas, com os seus três altares, duas sacristias e dois púlpitos, a fachada ornada com os emblemas da Paixão. É nela que se encontram reconstituídos os últimos momentos da vida de Cristo, os quais Zé dos Pregos enumera de forma exaustiva. É lá que o nosso cicerone, pecador confesso, pede perdão por alguma coisinha (“perdoai-me, Senhor, porque não sei o que faço”). Não haverá aqui martelada, mas Zé dos Pregos pede-nos que olhemos para a imagem do Cristo em Glória e, na parte inferior, para o Cristo morto. O que queremos para nós? Incómoda, a pergunta fica a martelar-nos na cabeça.

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