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segunda-feira, 21 de agosto de 2023

LIVRO: "O Ano do Macaco"



LIVRO: “O Ano do Macaco”,
de Patti Smith
Título original | “Year of the Monkey” (2019)
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Agosto de 2020


“Seguindo as suas vozes, entro na biblioteca de um enorme salão que possui exemplares de grande porte, preservados ao longo dos tempos, e cujas gravuras estão legendadas a lápis como num caderno de recortes. O navio a chegar ao porto de Brindisi quando Virgílio exalou o último suspiro. Navios fantasmagóricos presos no meio da água gelada do Oceano Ártico, cobertos por véus de gelo que brilham como diamantes africanos, Ossos flutuantes de gigantes pré-históricos que outrora foram orgulhosos icebergues. Naufrágios de embarcações com emigrantes e os rostos azulados das crianças e as colmeias que são cada vez menos e uma girafa morta.”

Um tempo chega em que deixa de ser claro se sonhamos os nossos sonhos ou se somos sonhados por eles. Momentos em que a realidade nos pressiona com tanta intensidade, que só nos resta sentarmo-nos no seu bordo cortante de incertezas, os pés pendentes sobre o abismo, à espera do dia claro que nos traga a força e o ânimo que julgámos perdidos para sempre. E depois, com a alma a pingar de dúvida, levantamo-nos e alçamo-nos pesadamente no voo, batendo as asas da esperança sem a certeza de estarmos vivos. Num correr de emoções desencontradas, é isto que Patti Smith se propõe partilhar com o leitor, neste seu “O Ano do Macaco”. Entre geografias pessoais e encontros improváveis, apelos rotineiros e amigos para a vida, numa escrita elegante e fortemente vívida, a autora transforma a narrativa num exercício místico e mágico de imersão no sonho e de recuperação da realidade, na qual se cruzam o eu e o mundo, a poesia e a política, a história e o futuro.

“O Ano do Macaco” reflecte sobre a natureza cíclica do tempo e do ser - do indivíduo, da cultura, da civilização. Assombrada e assombrosa, a história desenrola-se num lugar onde “o sonho é uma segunda vida”, um lugar com a lógica de um imaginário mundo subterrâneo dos tempos da infância, “com os seus duendes e gnomos e a caverna de Ali Babá”. Começa e acaba no camarim do Fillmore West, em San Francisco, atravessando um ano na vida da quase septuagenária Patti Smith. O Ano do Macaco, segundo o horóscopo chinês, no qual tudo acontece, do letreiro de um Hotel que parece ganhar vida aos encontros recorrentes com Ernest, um fã incondicional do escritor Roberto Bolaño. Lá estão “2001, Odisseia no Espaço” e a busca desesperada por uma vacina contra o coronavirus, o Retábulo de Ghent e um bar esconso que já serviu os melhores ovos com presunto do mundo, a doença de Sam Shepard e a morte de Sandy Pearlman, um shot de vodka russa e “o pior de nós” eleito Presidente dos Estados Unidos da América.

Acompanhamos Patti Smith por este mundo desconhecido de ruas secundárias e bares de tacos e os lugares são-nos vagamente familiares. São lugares que pertencem ao sonho (vimo-los no cinema, à boleia de Cassavetes, Jarmush ou Van Sant), mas nos quais a autora se empenha ferozmente em enfrentar a inquietante realidade que neles se esconde, uma realidade injusta e iníqua, à beira do colapso ecológico e moral. Mas se esgravatarmos mais fundo, por baixo deste manto de tristeza - amigos a morrer, filhos de estranhos a morrer, espécies a morrer, icebergues a derreter, a verdade a arder, a justiça a desmoronar-se - veremos que há algo que não desiste de viver, “como o nascimento de um poema ou a erupção de um pequeno vulcão”. É este tipo de otimismo que anima o livro, um optimismo enraizado na noite dos tempos, em estratos de culturas e civilizações que viveram e morreram, esperaram e desesperaram, procuraram um sentido para a vida e souberam encontrá-lo. Vivamos, pois, a vida. Simplesmente!

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