LIVRO: “Dor Fantasma”,
de Rafael Gallo
Ed. Porto Editora, Março de 2023
“Com o braço esquerdo, remove o lençol; gesto canhestro, de alguém apartado do controle. A coberta cai e se expõem as ataduras no final do braço direito: forma de ovo fechado. Por isso foi mais difícil abrir os dedos desse lado. Rômulo olha fixamente para as bandagens, estranha que lhe falte a dor esperada, por ter os longos dedos de pianista espremidos em tão pouco espaço. Só pode ser efeito dos anestésicos. E quando abre e fecha os dedos... Que diabos? A amplitude dos movimentos extrapola, em muito, as dimensões daquela pequena clausura de gazes e esparadrapos. É como se a mão adormecesse fora da mão. O indicador, ao ser estendido, chega aonde só se vê a parede ao fundo. O polegar também, todos; borram-se os limites. Dói onde nada existe.”
“As mãos pousam ao piano.” São estas as palavras que abrem “Dor Fantasma”, relato denso e perturbador do percurso de um pianista num mundo construído à sua imagem, o piano como prolongamento (e parte integrante) do próprio corpo. Um mundo de uma exigência sem limites, severo e inflexível, insensível à dor e ao sofrimento, que se mostra intolerante face ao erro e desconhece o significado da palavra perdão. Rômulo Castelo é a personagem principal deste romance. Pianista virtuoso, encontra na música a essência do seu próprio ser. “Cada gesto, cada detalhe, exatamente como deve ser; em tudo somente o que é certo. Nenhum equívoco, nada a ser indultado. O zelo exige rigor.” Por isso se prepara em segredo para espantar o mundo com a sua interpretação do “Rondeau Fantastique”, a peça intocável de Liszt. Por direito próprio, muito em breve será seu um lugar de relevo na História da Música. De si próprio exige a perfeição, nada menos do que a perfeição.
Em matéria de livros, os ventos que sopram do Brasil continuam a revelar-se extraordinariamente bonançosos. Depois de Celso Costa ter sido galardoado com o Prémio LeYa pelo seu “A Arte de Driblar Destinos”, é agora a vez de Rafael Gallo vencer a mais recente edição do Prémio José Saramago com o romance “Dor Fantasma”. Nele, o autor conta, de forma envolvente e intensa, uma história que rompe com as convenções e expande conceitos como a ambição, a arrogância, a inquietação ou o desespero a níveis do domínio do patológico. Os apontamentos pessoais denotam importantes conhecimentos nas áreas da psicologia e da psiquiatria. Por outro lado, a sua formação musical nas áreas da composição e direcção, aliada à experiência como produtor musical, revela-se um forte aliado no momento de descrever a relação do pianista com a sua música e está, inclusive, na base dos títulos escolhidos para cada um dos capítulos em que o livro se divide - “Coda”, “Exposição”, “Desenvolvimento” e “Cadenza”.
Mas é no campo das relações que o livro nos surpreende verdadeiramente. O comportamento de Rômulo Castelo perante o público enquanto artista, os alunos e colegas enquanto professor ou aqueles que lhe são mais próximos enquanto pai e marido, faz com que não dê qualquer valor a quem não se mostra ao seu nível, espalhando pelos outros a tristeza e o sofrimento que o atinge profundamente. É notável o tratamento dado por Rafael Gallo à personagem, tornando-a num ser tortuoso e abjecto, de quem o leitor tenderia a afastar-se, não fora a forma como a narrativa é conduzida, surpreendendo a cada nova atitude e reacção do pianista e daqueles que com ele se cruzam. “Dor Fantasma” é um daqueles livros desconcertantes, que sabem como trocar as voltas ao leitor, construindo agora para desconstruir logo de seguida, num verdadeiro jogo do gato e do rato que deixa tudo em aberto até à última página (e mais além…). É também um “thriller” psicológico por excelência, que expõe as feridas daqueles que desdenham ver para lá de si próprios. E que abundam, nas mais variadas áreas.
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