LUGARES: Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão
Rua do Boqueirão, 2 - Santa Cruz das Flores
Horário | Terça-feira a domingo, das 10h00 às 18h00; encerra à segunda-feira
Ingressos | Bilhete normal € 1,00
Ponta Delgada, Fajã Grande, Lomba Grossa, Lajes, Fazenda, Monte das Cruzes, Santa Cruz. É pelas vigias que a visita começa. Era aí, numa pequena guarita instalada em pontos estratégicos da costa, que o vigia lançava o olhar sobre a superfície do oceano na esperança de detectar à distância de várias milhas o bufo dos diferentes cetáceos, “identificando a espécie a que pertencia, a distância a que estava da costa, o sentido do seu rumo, o número de animais descobertos e a velocidade da sua marcha”. Dispunha de um binóculo, um relógio, um prato azimutal e um instrumento de alarme, geralmente um foguete. Depois era o arriar dos botes, o aproximar do animal, o trancar, o perseguir, o desferir lançadas até à morte e o rebocar para o cais onde a baleia era varada. São estes termos, com tudo o que implicam de engenho, perícia e muita coragem, que iremos perceber ao longo de uma deliciosa visita, com tanto de educativo como de lúdico.
Foi com os norte-americanos que os jovens florentinos aprenderam a pescar baleias. O posicionamento geoestratégico ímpar da ilha fez dela uma excelente plataforma logística para a frota estadunidense. Víveres, água e homens para completar tripulações eram carregados em qualquer baía. Cedo encontramos baleeiros da ilha nas barcas americanas. Joseph Rose, natural das Flores, embarcou no porto de New Bedford, no ano de 1808. Tinha dezassete anos de idade. Horatio Greene afirma que nas Flores é fácil encontrar jovens dispostos a embarcar a troco de roupas e pouco mais. “São ordeiros, trabalhadores incansáveis e nunca abandonam o barco enquanto lhes devem um dólar.” Estes agricultores, pelas circunstâncias feitos baleeiros, cedo foram reconhecidos. Herman Melville imortalizou a coragem, destreza e carácter dos açorianos: “Um não pequeno grupo de baleeiros provém dos Açores, onde os navios de Nantucket lançam ferro frequentemente para completar as suas equipagens com os sólidos camponeses dessas ilhas rochosas. (…) Não de sabe porquê, mas é dos ilhéus que saem os melhores baleeiros.”
Documentados com belíssimas imagens e complementados com pequenos vídeos que ilustram a caça à baleia como era feita até há cerca de meio século, os textos vão dando conta do “arriar à baleia”, da lancha motorizada, ou “gasolina”, introduzida nos anos 20 do século passado, do arpoar e da luta que se seguia entre o animal e o homem, terminando com a morte da baleia ou com a desistência dos baleeiros e o corte da linha. Depois de morto, o corpo da baleia flutuava e era trazido para o varadouro à força de braços, juntando vários botes impulsionados a remos. Numa primeira fase, as baleias foram desmanchadas no mar, tal como tinha sido aprendido nas baleeiras americanas. Com o decorrer do século XX, passaram a ser varadas e cortadas em plataformas construídas na orla costeira. A construção naval é outro dos polos com verdadeiro interesse nesta visita, sobressaindo o nome de Francisco José Machado, nascido em 1859 nas Lajes do Pico e que foi o primeiro carpinteiro naval açoriano a construir um bote baleeiro dos Açores. Fê-lo partindo do modelo americano, que desmontou e estudou em pormenor, introduzindo-lhe alterações de modo a torná-lo mais leve e hidrodinâmico.
“Hoje estão mortos os velhos que me contavam essas histórias de barcas-de-baleia e terras grandes. (…) Tinhas noventa anos, ti Jzé do Pico, e eras como um menino sentado ao canto da cozinha contando os casos da tua vida: onze vezes embarcado, oito vezes naufragado, vagabundo de Honolulu, de Sidney, de Punta Arenas, amante da rainha de Samoa (…) ti Serpas, hoteleiro na Austrália, o velho Mônica que foi contrabandista em Marselha, o Alabama que foi corsário, meu primo Mata-Ratos, emigrante falhado que fazia versos de dia de São Marcos, o Frade vagabundo que morreu no mar… (…)”. As palavras são de Pedro da Silveira, no seu livro “A Ilha e o Mundo” e ajudam o visitante a mergulhar na alma do ilhéu e, em particular, na daquele que teve toda a sua vida ligada ao mar e à pesca da baleia. A invocação dos santos de cada um - Santo António na Fajãzinha, Senhora da Saúde na Fajã Grande, Senhora dos Milagres no Lajedo, Nossa Senhora da Conceição em Santa Cruz ou Senhora do Rosário nas Lajes das Flores - ocupam um núcleo mais íntimo, mais devocional.
Em 1950, a Sociedade Agrícola e Comercial Piano Lda., sediada em Almada, tornou-se proprietária da Fábrica do Boqueirão, abrindo posteriormente venda das acções, que foram adquiridas pelos armadores baleeiros das Flores. As décadas de cinquenta e sessenta do século XX corresponderam à época áurea da baleação florentina, com um recorde de 103 animais capturados em 1963. É da transformação das matérias e do produto final que o último pólo da visita nos fala. Içados para a plataforma superior da Fábrica, toucinho, carne e ossos eram lançados no interior das autoclaves, que se fechavam para ser injectado vapor sob pressão e retirada a matéria gorda. O óleo era extraído através de válvulas existentes nas autoclaves e conduzido em tubos de ferro para um tanque de cimento na sala e daí para outro no exterior onde era medido, antes de seguir para os depósitos existentes no subsolo da plataforma de desmancho. O que não nos é dado ver e sentir é o barulho das máquinas, o calor e a humidade do vapor das caldeiras, o cheiro gorduroso e persistente que se entranhava na roupa e na pele, enfim, os componentes de uma laboração particularmente árdua e insalubre. Mas isso podemos bem imaginar.
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