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segunda-feira, 8 de maio de 2023

TEATRO: "Longa Jornada para a Noite"



TEATRO: “Longa Jornada para a Noite”,
de Eugene O’Neill
Encenação | Ricardo Pais
Cenografia | Pedro Tudela
Música | Ricardo Pinto
Figurinos | Bernardo Monteiro
Interpretação | Emília Silvestre, Joana Africano, João Reis, Pedro Almendra, Simão do Vale Africano
Produção | Ensemble – Sociedade de Actores
180 Minutos (com intervalo) | Maiores de 14 anos
Teatro Nacional de São João
07 Mai 2023 | dom | 16:00


“ (…) Nunca sonhei que a Santa Madre me fosse dar um tal conselho! Fiquei mesmo escandalizada. Disse ‑lhe, claro, farei tudo o que me sugeriu, mas sabia que era simplesmente uma perda de tempo. Depois de a deixar, senti ‑me completamente confusa, e fui ao santuário e rezei à Virgem Santíssima e encontrei de novo a paz porque sabia que ela ouvira a minha prece e haveria sempre de amar‑me e livrar‑me do mal desde que nunca perdesse a fé nela. (Faz uma pausa e surge‑lhe na face um desconforto crescente. Passa a mão pela testa como se afastasse teias de aranha do cérebro – vagamente.) Foi no inverno do meu ano de finalista. Depois, na primavera, aconteceu‑me uma coisa. Sim, lembro‑me. Apaixonei‑me por James Tyrone e fui tão feliz por uns tempos.”

Drama familiar denso e particularmente doloroso, “Longa Jornada para a Noite” centra a acção em 1912 e decorre num único dia na casa de veraneio dos Tyrone. James, o patriarca da família, foi em tempos um conceituado actor, mas acabou por se vulgarizar ao escolher encenar sempre a mesma peça e agora entrega-se ao álcool e a pequenas negociatas nem sempre lucrativas. A esposa, Mary, abandonou os sonhos da meninice para acompanhar o marido nas suas constantes viagens e, na sequência do nascimento do filho mais novo, criou uma dependência da morfina. Jamie, o filho mais velho do casal, é emocionalmente instável, estoira o pouco dinheiro que ganha em mulheres e bebida e tem ciúmes do irmão mais novo, Edmund, um jovem que pretende tornar-se escritor, mas que está gravemente doente, com tuberculose. Há, finalmente, Cathleen, a criada da casa, espécie de contraponto de leveza e inocência ao drama que se desenrola à sua volta.

Conhecer um pouco da biografia de Eugene O’Neill permite-nos perceber que “Longa Jornada para a Noite” não é apenas um texto extraordinário. Nele se abrigam a dor e o sofrimento que ensombraram a vida do dramaturgo: uma família cativante mas destruidora, uma saúde frágil (entre a tuberculose da juventude e a doença de Parkinson sobrevinda aos 60 anos), uma tentativa de suicídio, dois divórcios, as tentações do álcool, um filho que se droga, um outro que vem a suicidar ‑se. O próprio mundo, por volta dos anos 1940 - a peça foi escrita em 1941 e encenada pela primeira vez em 1956, três anos depois do falecimento de O’Neill -, fornece à sua alma sensível boas razões para alimentar angústias, amarguras, decepções, um abismo cavado entre o sonho americano e a realidade, entre os sonhos de juventude e as transformações advindas no adulto. O’Neill fará dizer a Mary: “Nenhum de nós tem culpa das coisas que a vida nos fez. Estão feitas antes de darmos por isso, e assim que estão feitas fazem‑nos fazer outras coisas até que por fim tudo se mete entre nós e o que gostávamos de ser, e perdemos o nosso verdadeiro eu para sempre.”

Num cenário resumido ao ambiente de uma sala de estar, “Longa Jornada para a Noite” é uma peça de actores. Segurar, com a intensidade que o texto exige, quase três horas de teatro, é obra. O casal Tyrone (João Reis e Emília Silvestre) pauta a sua relação pelo muito que se foi acumulando no seu mais íntimo, incapaz de contrariar o acelerado declínio de uma vida toda ela vivida em função do homem. Neste particular, Emília Silvestre é comovente na forma como assume o desfasamento da realidade e nos brinda com monólogos de uma enorme tensão, nomeadamente aquele que encerra a peça. Os desempenhos de Pedro Almendra (Jamie) e Simão do Vale Africano (Edmund) são deveras convincentes, reforçando um drama que cresce até aos limites do suportável. Sem sarcasmos nem ironias, os apontamentos bem humorados de Joana Africano, no papel da criada, emprestam à peça o necessário toque de humanidade. Numa altura em que andamos todos tão fartinhos que nos atirem areia para os olhos, não dar por Ricardo Pais e saber que ele está lá em todos os momentos - nas marcações, nas falas, nos gestos, nas entradas e saídas de cena, num rosto a contraluz -, é o maior elogio que se pode dar a uma encenação feita de rigor, engenho e subtileza.

[Foto: TNSJ | https://www.tnsj.pt/]

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