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segunda-feira, 15 de maio de 2023

LIVRO: "No Princípio era a Dança"



LIVRO: “No Princípio era a Dança”,
de Minês Castanheira
Ed. Fresca, Setembro de 2022


“Quem ama a verdade incompleta do verso quieto
quem soube fazer da subida à árvore uma escolha,
é certo,
nunca passou o arado sobre água lisa,
nunca perfurou a palavra até ao outro lado da folha.”
[poema “Instinto”, de Minês Castanheira]

“Quando ela nasceu, o escritório da casa deu lugar ao quarto de bebé. Em exílio, eu comecei a cortar versos na cozinha.” Quase no final da descrição que de si faz, impressa na badana do livro, Minês Castanheira partilha com o leitor este pedacinho da sua própria realidade, acrescentando que “a poesia está, por isso, em todas as coisas que ainda falta viver.” Ler “No Princípio Era a Dança” é entrar na intimidade da autora, é ajustar os olhos à penumbra que tudo esfumaça, é contar as Penélopes que atravessam o poema, é observar com as mãos o ângulo mais redondo do mundo onde se abriga um bairro que (não por acaso) é dos livros, é cavalgar as muitas ondas das muitas utopias. É sentir a vontade de ocupar os lugares, quer os comuns, quer os que resistem a ser conquistados, mas que pela vontade e pela força do poema acabam por ceder. É gritar liberdade, é construí-la todos os dias porque a sabemos o bem maior, o mar por horizonte, os pássaros que estão sempre a partir.

Sonho poético em confronto com muitos outros sonhos, “No Princípio era a Dança” assume-se como estratégia de vivência e convivência. Os poemas são narrativos, contam histórias. Falam da importância de “fazer uma lista das coisas que sombreiam”, “ter pulso que chegue para prancha e corda”, “gastar decisões”, guardar num punho fechado “todo o som do coração”, saber “o que fazer com a bala”. Real ou metafórica, a “dança” rompe no palco do poema. Encontramo-la nas idas e vindas pela casa, nos corredores, nos embalos, na pele com pele, no “ser mulher e harpa”. A cada instante há um verso que se desenha, mas como “cortá-lo” com todas essas idas e vindas, todos esses corredores, todo esse embalo? Há sempre mais uma sopa por fazer, mais uma tábua enfarinhada, mais um novelo que se enrola, mais umas batatas por descascar, mais uma casa que é necessário varrer para dentro.

Também eu “não sabia que a poesia de verdade estava nas batatas mesmo que não se comam”. Minês Castanheira faz da coisa mais pequenina, mais frágil e indefesa, uma verdadeira “bomba-atómica” que deflagra sob a forma de poemas. Poemas onde cabem ela própria e muitas outras mulheres que lhe servem de inspiração, Emily Dickinson e Maria Teresa Horta, Vivian Maier e Isadora Duncan, Yoko Ono e Calamity Jane. São elas que, no acerto de contas com as suas próprias vidas, no vento que trazem dobrado pela cintura, na palavra que perfuram até ao outro lado da folha, ensaiam uma dança que a todas une. Dança de roda, dança viva que rodopia no enigma que é o poema, que se veste de sedução “qual pétala alada em tudo o que canta e voa”. Dança incontida, irrefreada, ardente. Dança eufórica, de quem sabe tomar nota “de que tudo é novo e de que tudo recomeça”.

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