LIVRO: “Um Castelo em Ipanema”,
de Martha Batalha
Título original | “Nunca Houve um Castelo” (2018)
Ed. Porto Editora, Setembro de 2020
“O lado de Estela também não fazia progressos. Joaquim e Ana queriam chamar os parentes de Realengo, integrantes da mais tradicional comunidade portuguesa do Rio. Portugueses na essência e na aparência, dançadores de vira, apreciadores de fado, duros com os seus e com os outros, repletos de um amor meio bruto. Mas os parentes de Realengo eram como elos de uma corrente. Um se ligava a outro, que se ligava a outro e a outro, sendo impossível chamar só alguns. Havia também os sócios do Clube da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, que Ana e Joaquim conheciam desde os tempos de biscates e empregos mal pagos. Uma portuguesada cheia de filhos, netos e enteados que somavam tanta gente que em algum momento era preciso botar a mão na testa e parar de contar.”
Era uma vez um Johan, um castelo e uma mulher de cabelos louros. Assim poderia começar esta verdadeira saga familiar, feita de um quotidiano ora agitado e rocambolesco, ora terno e cúmplice. No miolo da história, Estela e Tavinho personificam o casal com tanto a uni-lo como a separá-lo, discordantes nas ideias, desavindos nas rotinas, mas com muito amor entre os dois. Amor que não é de sempre mas que será para sempre. Gravitando à sua volta, amigos e amantes ajudarão a compor o retrato de uma sociedade brasileira que se deixou degradar ao longo dos tempos, qual “castelo em Ipanema”, que até os mais velhos afirmam que nunca existiu. Um castelo que descobriremos, não sem antes descobrirmos Ipanema num domingo de Maio, nada mais que uma praia deserta, cortada no meio por um rio que se estende até ao mar, a água límpida a convidar a um mergulho.
Dizer de “Um Castelo em Ipanema” que é um livro divertido e descomprometido é, no caso concreto, um elogio. Há nele uma leveza que nunca é inconsequente, um sentido de humor que convida à saudável gargalhada, uma ironia que tem tudo a ver com destino, uma sensibilidade que aquece e embala. É um livro envolvente, que agarra o leitor desde o início, em cuja leitura mergulhamos com um sorriso no rosto, certos de que nos espera uma nova e inesperada peripécia a cada virar de página. Porque este é um livro que nos oferece, de forma vívida, um mundo de sons e tons genuínos, extraídos do peculiar quotidiano de uma família no Brasil, ao longo de quatro gerações. Através dela, Martha Batalha fala-nos do sonho da ascensão social, dos ideais femininos e feministas, da revolução sexual, da reacção ao golpe militar, da divisão de classes, da deterioração do país, mostrando o quanto há de precário na memória, de efémero na matéria, de imponderável no futuro.
Martha Batalha tem uma escrita deliciosa. Com um domínio perfeito dos tempos da narrativa e uma enorme segurança na composição de cada uma das personagens, a autora sabe temperar a acção com o pitoresco que se desprende das falas correntes, dos passatempos, das comidas, dos lugares. As personagens por si criadas levam-nos a conhecer “a turca que vendia fósforos, o homem que vendia aves, o leiteiro com vaca e bezerro, o pescador com balaio de peixes, o italiano com cesto de empadas, o mulato com tabuleiro de doces”. Olhamos para todos eles, descalços, e conseguimos sentir a cacofonia que se solta no ar e se mistura com uma infinidade de aromas, uns bem apelativos, outros nem por isso. Mas a autora não nos leva apenas à praia, ao mercado, a uma festa ou, muito simplesmente, nos deixa à janela a ver quem passa. Ela é igualmente capaz de nos colocar numa cela a assistir ao espancamento de um preso político ou levar-nos na Passeata dos cem mil na Candelária, pedindo o regresso da democracia. Um belíssimo livro de uma autora cujo nome importa reter.
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