LIVRO: “O Acontecimento”,
de Annie Ernaux
Título original | “L’Événement” (Éditions Gallimard, Paris, 2000)
Tradução | Maria Etelvina Santos
Ed. Livros do Brasil, Setembro de 2022 (reimpresso em Novembro de 2022)
“Milhares de raparigas subiram uma escada, bateram a uma porta atrás da qual estava uma mulher acerca de quem nada sabiam, a quem iriam entregar o seu sexo e o seu ventre. E aquela mulher, a única pessoa, então, capaz de acabar com a infelicidade, abria a porta, de avental e pantufas às pintas, com um trapo na mão: ‘Diga lá, menina!’. ”
Leio “O Acontecimento” no Dia Internacional da Mulher. Trata-se de uma casualidade, mas parece-me que faz todo o sentido associar este livro a um dia em que celebramos a coragem e determinação das mulheres que ajudaram e continuam a ajudar a redefinir a história. Em “O Acontecimento”, Annie Ernaux revisita um momento particularmente difícil da sua vida, desce de novo ao fundo de cada imagem, volta a escutar palavras ou frases “cujo sentido deveria ser à época tão insustentável ou, ao invés, tão consolador, que pensar hoje nelas me submerge ora em desgosto ora em doçura.” Numa abordagem retrospectiva, “O Acontecimento” é um testemunho pungente de uma vivência comum a tantas mulheres, mostrando o absurdo de uma lei que deixava morrer as mulheres, ao mesmo tempo que estabelece uma relação entre gravidez e fracasso social e assume a mancha de vergonha perante a reprovação dos outros.
No seu constante rodopiar, a vida nem sempre soma às mesmas causas os mesmos efeitos. É isto que Annie Ernaux começa por nos dizer, afastando-se de um veredicto no Hospital Lariboisière de Paris e aproximando-se de outro, de sentido contrário, em Rouen, quase quatro décadas antes. “Entre o método Ogino e os preservativos a um franco nas máquinas de venda”, é no episódio mais antigo que a autora concentra a sua atenção, recuando a 1963 e ao tempo em que descobre que está grávida. Um “acontecimento” milagrosamente adiado ao longo de quase dez anos mas que, agora, “aconteceu”. “Há anos que giro à volta deste acontecimento da minha vida”, escreve a autora a dada altura, deixando perceber o quão marcantes foram os momentos que envolveram a gravidez e o desmanchar do filho, o quanto os seus efeitos podem perdurar no tempo.
Escrito entre Fevereiro e Outubro de 1999, “O Acontecimento” responde a uma necessidade interior. Um beco esconso, uma mulher de avental e pantufas às pintas com um trapo na mão, um quarto escuro com cortinas nas janelas, uma bacia esmaltada onde flutua uma sonda vermelha, são apenas algumas das peças fortemente inscritas na memória da autora. O acontecimento é vivido “como o irromper de um obus ou de uma granada, a rolha de uma pipa que se solta”. Ao pôr em palavras uma experiência total de vida e morte, desgosto e lágrimas, Ernaux coloca-se por inteiro neste exercício de partilha, mostrando a realidade das mulheres e, por consequência, rejeitando colocar-se do lado da dominação masculina do mundo. Os pensamentos que se abrigam entre parêntesis, as datas como fronteiras entre a vida e a morte, o médico “clandestino” e a mulher “fazedora de anjos”, a agulha de tricô e o feto preso ao cordão, são sucessivos murros no estômago. Resta uma enorme admiração pela coragem, generosidade e coerência desta mulher, capaz de expor em texto o seu corpo e de nos lembrar que a luta continua!
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