EXPOSIÇÃO DE DESENHO E PINTURA: “Histórias de Todos os Dias. Paula Rego, anos 70”,
de Paula Rego
Curadoria | Catarina Alfaro
Casa das Histórias Paula Rego
06 Nov 2022 > 21 Mai 2023
Os mais familiarizados com a obra de Paula Rego saberão que os anos 70 correspondem a um período de relativo apagamento. É um momento de crise pessoal e da carreira, ao qual não serão alheios a morte do pai, as dificuldades financeiras, geradas pela falência da empresa familiar e a falta de remuneração pelo seu trabalho como artista, para além da progressão do débil estado de saúde do seu marido, diagnosticado com esclerose múltipla. É na quinta da família, situada na Ericeira, que a artista encontra um sentimento de leveza que se revela proveitoso em termos criativos, apesar da sua insatisfação com a realidade artística e cultural do país que ignorava práticas mais experimentais. Apesar de tudo, Paula Rego continua a expor e em 1975 torna-se bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, lançando-se numa intensa pesquisa sobre o universo literário dos contos portugueses. O mercado e a crítica nacionais servem nesta altura de suporte à artista e, não sem surpresas, é esta a década que acabará por estar mais presente nas colecções nacionais, como pode constatar-se na mostra agora patente.
Durante os anos 1969 e 1970, Paula Rego dera início a um processo ilustrativo sobre as memórias infantis e familiares que tem subjacente uma análise psicológica das relações de “dominação” que assumem diversas formas. São as “histórias de todos os dias”, conjunto de trabalhos de desenho, pintura e escultura em tecido que exploram o imaginário infantil da artista, um ambiente de tensão, mas onde também acontecem as experiências mais marcantes da infância e adolescência: o nascimento, as brincadeiras com as outras crianças, as birras, as visitas e as relações familiares, e em que o domínio da figura paterna na sociedade patriarcal portuguesa é, por vezes, evidenciado. Também os acontecimentos políticos são alvo do olhar crítico e por vezes caricatural de Paula Rego, cujos desenhos revelam o seu desencanto face ao malogro da anunciada Primavera marcelista, às limitações à liberdade nas eleições de 1969 ou à persistência da Guerra Colonial.
Do ponto de vista técnico, generaliza-se o uso da tinta acrílica, o que lhe garante um processo de trabalho mais rápido e permite sobretudo explorar uma paleta mais diversificada e vívida de cores que a aproximam da cultura pop e do psicadelismo. As suas telas passam a ter como planos de fundo roxos, cor-de-rosa, amarelos, laranjas e verdes, dos quais se destacam figuras e outros elementos desenhados a caneta ou a tinta acrílica, de contornos bem definidos, recortados e colados, e que se introduzem metodicamente num complexo esquema compositivo. A multiplicidade referencial presente nas obras da década de 70 é também consequência de um sentido de apropriação que é estrutural na identidade artística de Paula Rego. Os livros lidos, as histórias ouvidas na infância, as notícias dos jornais, os filmes que vê no cinema e as exposições que visita durante as suas estadias em Londres são determinantes para a construção da sua linguagem figurativa singular. É precisamente pela diversidade das fontes de inspiração, próximas do seu quotidiano e através das quais constrói um território figurativo único e pessoal, que Rego reclama a sua autonomia perante os movimentos artísticos do seu tempo, uma especificidade que a sua obra manteria até ao final da sua carreira.
[Baseado no texto de Catarina Alfaro que acompanha a exposição]
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