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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

LIVRO: "O Alfarrabista de Ponta Delgada"



LIVRO: “O Alfarrabista de Ponta Delgada”,
de Francisco Duarte Mangas
Ed. Caminho das Palavras, Março de 2022


“Estou junto da árvore-da-borracha, no topo do jardim. Prim senta-se a meu lado, cativa odores na brisa e parece-me inquieto. Mau tempo não será, a manhã apresenta-se limpa, sem uma única nuvem a macular o azul do céu. Olho a árvore, o seu crescimento assinalável. Repito. Muitas gerações hão de vê-la a crescer, a soltar as raízes da terra, como veias gigantes, a alargar o perímetro do tronco, carecendo de vários homens para a abraçar. A árvore-da-borracha, esta, plantada por minha ordem, encerra o sagrado lume da eternidade, resistirá a tudo, aos temporais, a sismos; as raízes submersas vão beber nas profundezas do mar, onde dizem ser doce a água. Ou talvez não.”

Belo e delicado como uma flor, assim é “O Alfarrabista de Ponta Delgada”, o mais recente romance de Francisco Duarte Mangas. A sua prosa elegante e harmoniosa é um convite à contemplação e ao recolhimento. Pede que o folheemos comedidamente, em silêncio, como quem pousa o olhar num canteiro, preso da graça e formosura das suas flores, do aveludado das suas pétalas ricas em matizes, do suave perfume que libertam. Como o húmus, dá e recebe, entrega-se aos caprichos da mãe-natureza, à sua avareza como à sua prodigalidade. Habita-o o sopro do vento, o cantar dos melros, o nascer do dia, uma camélia que desabrocha, o diálogo que as raízes das araucárias, do pinheiro-de-damara, do mirtilo-magenta, da canforeira, da magnólia ou do til mantêm entre si. Anima-o o secreto desejo das sementes, que delas nasçam utopias e não se lhes exija serem comestíveis os seus frutos.

Cruzando as histórias de duas pessoas que habitam espaços e tempos diferentes, o livro traz com ele a ansiedade da espera, o desafio da novidade, a alegria da descoberta. George Brown é o autor de um velho manuscrito, Laura a sua leitora, mais de cento e cinquenta anos depois. Na leitura de um, o sentir do outro. Em ambos a mesma solidão, um passado carregado de dor e luto, uma mágoa irresolúvel face às injustiças do mundo, a mesma paixão pelas plantas. Jardineiro inglês contratado por um dos homens mais ricos de Ponta Delgada, a Brown se deve, a partir de 1845, o trabalho de plantação de alguns dos mais belos espécimes arbóreos dos Açores e que podem ser apreciados naquele que é hoje o Jardim Botânico José do Canto, em Ponta Delgada. Entusiásticas, ricas de sons e imagens, são dele as impressões vertidas nas páginas do diário, esse mesmo que Laura resgata num velho alfarrabista. A distância entre as duas personagens esbate-se. As alegrias são as mesmas. As angústias também.

Quem leu “Diário de Link” ou “A Cidade das Livrarias Mortas” sabe que Francisco Duarte Mangas é um escritor criativo, perspicaz e enormemente talentoso. A qualidade da sua escrita reflecte uma invulgar atenção ao detalhe, um refinamento no modo como burila as frases, uma grande inteligência na construção de personagens e situações complexas, tornadas simples graças a esta forma única de conduzir a narrativa. “O Alfarrabista de Ponta Delgada”, porém, suplanta tudo o que já li deste autor. A matriz poética da escrita de Francisco Duarte Mangas supera-se em refinamento e elegância. Há nele um prazer em socorrer-se de vocábulos menos correntes, prazer que se transmite ao leitor no resguardo de um “ensalmo”, nas “estrídulas” gaivotas, num precioso “adir”, no “fulgir” de um cálice do Santo Cristo. O próprio ritmo da narrativa é inteligentemente pensado, dando ao leitor o espaço e o tempo devidos ao recato e à contemplação. Uma flor preciosa que guardamos com amor.

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