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domingo, 22 de janeiro de 2023

LIVRO: "Dano e Virtude"



LIVRO: “Dano e Virtude”,
de Ivone Mendes da Silva
Ed. Língua Morta, Abril de 2022


“Se eu morresse hoje de morte suspeita e viessem reconstruir o trajecto do meu último dia bastaria seguir as chávenas que esqueço pela casa. As de chá e as de café. A que fica esquecida junto ao relógio na mesa da entrada. A do sofá quando atendo o telefone e as duas aqui na secretária. As da bancada da cozinha. Assim descobrir-me era tão-só saber por que chávena começar. (agora vou arrumá-las).”

“Dano e Virtude” tem a forma de um diário. Um diário “convulso”, no dizer da autora. “Traz dos dias algumas horas e nem sempre as melhores. Umas vezes diz a verdade. Outras evita-a”. São trezentas e trinta entradas que acompanham os dias que se repetem, as estações do ano que se sucedem. A marcá-las, a rotina do quotidiano onde tudo cabe: Relógios desacertados, um cheiro de oregãos, um tanque de pedra, o preço vertiginoso de uns figos no Lidl, armários de roupa branca, cães que ladram ao longe, uma memória de pó-de-arroz no ar, rosas murchas numa jarra, um cortejo de carros antigos, uma frase perdida, os 94 anos de Agustina, a fugacidade do fim-de-semana, o “Take this Waltz” na voz do Leonard Cohen, a manga de uma camisola de rojo no chão, o homem que corre e diz boa noite, facturas com número de contribuinte, um Pai Natal pendurado na varanda, o mistério que há nos gatos, árvores a florir em Janeiro, o aro da lua ainda deitada no céu, os likes no Facebook.

Um caderno, uma lapiseira, olhar atento e ouvido à escuta é tudo quanto Ivone Mendes da Silva precisa para alimentar este seu “vício autobiográfico”. Nada mais pede, tanto lhe basta para uma entrada do seu livro. Parece que estou a vê-la sentada à mesa da esplanada do Café, a vida feita de pequenos nadas a correr à sua frente (com Sérgio Godinho ou sem ele). Na mesa do lado estou eu, cúmplice de um olhar agudo onde ternura e ironia cabem em partes iguais. Também eu vejo que “do outro lado da rua saem do banco três homens muito altos e esgalgados e param a conversar na esquina. A ponta incandescente de um cigarro brilha no escuro. Parecem estranhas aves pernaltas assim aperreados em fatos pretos muito justos. Acho até que as calças lhes ficam curtas.” Envolto nos meus pensamentos, espreito-a a escrever e pergunto-me por que raio pintará ela “os olhos com um afã egípcio se pelo meio da manhã o calor e a transpiração já [lhe] deixaram na cara um cenário de pós-guerra.” E lembro-me que “hoje ouvi chamar rosas albardeiros às flores que sempre nomeei peónias. Se as rosas são sem porquê não o são sem nome mas parece-me aquele albardeiros uma feia designação”.

Num exercício de partilha pleno, feito da alegria da novidade, do prazer do imprevisto, da bondade do silêncio ou do milagre da criação, a autora vai conquistando o leitor com o “inocente desassiso” do seu jeito muito pessoal de contar. É fácil ler Ivone Mendes da Silva, é fácil vermo-nos nas suas observações. Menos fácil é sentirmo-nos observados. Sentirmos que alguém reparou em nós e pode ter escrito que “há dias em que só encontro pessoas feias”. Mas isso faz parte do jogo que é ler este “manual da vida diária” e revermo-nos nele, em parte ou no todo. No demais, por muito estranho que isto possa parecer, “Dano e Virtude” é pura poesia. A primeira entrada deixa-nos essa sensação; com as seguintes vem a confirmação. Num aparte muito pessoal, devo dizer que li “Dano e Virtude” ao mesmo tempo que “As Pequenas Coisas”, o último livro de poemas de João Luís Barreto Guimarães. É fascinante cruzar a prosa de uma com a poesia do outro (eventualmente, fazer o exercício de dar a forma de prosa aos poemas de João Luís Barreto Guimarães e transformar em poemas as entradas do livro de Ivone Mendes da Silva). Saberão, então, daquilo que falo.

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