LIVRO: “Misericórdia”,
de Lídia Jorge
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Outubro de 2022
“Por isso, se a noite quisesse, mesmo ganhando eu a batalha, ela poderia meter a mão na minha bolsa de pano, ler a mensagem do sargento e rasgá-la. Ela sabe como, pela primeira vez, sou infiel ao sedutor Edgar de Paula, o pai da minha filha, de quem ela herdou o carácter. A noite sabe e por isso vem de língua vermelha, pendida, de fora, a perguntar pela quinta vez - ‘Sabes tu o que é o amor? Então como queres partir desta vida em paz contigo mesma, se não és capaz de definir o que faz mover o vivente? Das plantas aos animais, e até dos mármores aos planetas? Diz lá…’ Regougou ela, a raposa, junto aos meus ouvidos. A sua saliva era pegajosa. E eu disse - ‘Não te aproximes demais. Não sei definir, mas sei contar.’ Então a noite, a perversa, desafiou-me, tomando por inteiro o meu corpo - ‘Conta lá.’ ”
Mais do que um livro, “Misericórdia”, é um acto de coragem. Uma dádiva de amor. E uma lição de vida. Emociona-nos pela verdade e bondade que dele emanam, pela sua visão clara e lúcida, pela espontaneidade e autenticidade do seu falar. Lê-lo é olharmo-nos nos olhos em frente ao espelho, despojados do fingimento e artificialismo com que nos mascaramos, certos das nossas limitações, fragilidades e indecisões, aceitando com naturalidade a nossa finitude. Pela universalidade dos seus fundamentos e pela riqueza dos valores humanos que convoca, “Misericórdia” prende o leitor desde as primeiras linhas, cola-se a ele, mistura-se, liquefaz-se no seu interior. Nessa tão grande proximidade, nessa intimidade mais funda, mostra-nos a vida no que tem de mais belo: os passos que lhe dão sentido, a riqueza dos seus ciclos, a sua enorme imponderabilidade.
Maria Alberta Nunes Amado é a protagonista desta história. No livro é Dona Alberti, assim a tratam no lar para onde se mudou por vontade própria quase há dois anos, o Hotel Paraíso, em Valmares, a linha do Atlântico lá ao fundo. É aí que vamos encontrá-la, sentada na sua charrete a caminho do Salão Rosa, no quarto escutando as cuidadoras ou os outros hóspedes, na cama à espera da noite que espreita no seu lugar de sombra, pronta para abrir o leque negro das suas asas e a provocá-la com a impertinência das suas questões. São dela as respostas mais assertivas, os conselhos mais sábios, os silêncios mais eloquentes, os segredos mais bem guardados. No toque de umas mãos há graça e delicadeza, o perfume que emana de um corpo inebria, uma música a quatro vozes é paz e concórdia, o fogo de artifício em noite de passagem de ano é festa e alegria. Só a filha, com os seus livros de final indigente, a catar as migalhas que caem da mesa da História e a fazer amor com o Universo, destoa num mundo que aspira ao harmonioso e ao belo.
Li “Misericórdia” num ápice. Tenso, inquieto, em sobressalto, vivi cada dia deste arco entre a Primavera e a chegada do Inverno como se dos meus próprios dias se tratasse. Os dias a seguir às noites a seguir aos dias. Levantar, lavar, vestir, comer, despir, deitar, levantar. As vozes sem rosto e os rostos sem voz. A violência numa televisão sem som como uma banda desenhada de mau gosto. A humildade de uns e a soberba de outros. O intenso rodopio dos que partem e dos que chegam. As intrigas e as pequenas confidências, a desconfiança e o enxovalho, a ameaça e as “vias de facto”. Um microcosmos onde “se albergam todo o tipo de pessoas, e como na vida lá fora, os malignos passam por cima dos outros”. Em crescente sobressalto, assim o li. Em estado de alerta e, contudo, impreparado para os “sete parágrafos em seu nome” que fecham o livro. Sete momentos arrancados ao génio, sete diamantes em forma de prosa, sete céus de um firmamento chamado literatura. “Misericórdia” não é um livro. É um milagre!
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