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sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

CINEMA: "Cesária Évora"



CINEMA: “Cesária Évora”
Realização | Ana Sofia Fonseca
Argumento | Ana Sofia Fonseca
Fotografia | Vasco Viana
Montagem | Cláudia Rita Oliveira
Interpretação | Filipe Araújo, Mara Costa, Ana Sofia Fonseca, Ricardo Freitas, Hélder Lopes, Joana Lourenço, David Medina, Miroca Paris, Agostinho Ribeiro, Rosa Teixeira da Silva, Cesária Évora
Produção | Ana Sofia Fonseca, Irina Calado
Portugal | 2022 | Documentário | 94 Minutos | Maiores de 12
Cine-Teatro Eduardo Brasão
25 Jan 2023 | qua | 15:30

“Chamo-me Cesária Évora, tenho 50 anos e há mais de trinta que canto mornas e coladeras. Canto no ‘Piano Bar’, no ‘’Ofélia’, no ‘North Country’, no ‘Solpontense’ ou no ‘Florbela’ e não recebo dinheiro. Canto de graça e ainda pago aquilo que bebo. Pelo menos, enquanto canto não penso em nada. Esqueço tudo.” São palavras fortes da “Diva dos Pés Descalços” em entrevista ao Instituto Francês do Audiovisual, em 1991. São as palavras de alguém que, sem marido e com filhos para criar, tinha como única ambição pôr comida na mesa e poder ter uma casa condigna para morar. Mas será esta mulher extremamente pobre, a viver da caridade dos outros, desprezada e insultada por tantos, tratada como bêbada e prostituta, que por uma volta do destino virá a projectar a sua voz e a música de Cabo Verde além fronteiras ao som de temas como “Mar Azul”, “Miss Perfumado” ou “Sodade”. De Paris para o mundo, Cize, como era conhecida, tornou-se na maior embaixadora do seu país, com vinte e seis trabalhos editados a título individual e a conquista de um Grammy de melhor álbum de world music contemporânea em 2004.

Com enorme sensibilidade, Ana Sofia Fonseca monta o puzzle da vida de Cesária Évora e oferece-nos um documentário belíssimo onde o êxito alcançado surge como espécie de contraponto a uma vida de penúria e amargura. É comovente perceber como tamanho sucesso nasce da crença de um homem, o produtor e amigo José da Silva, na qualidade e capacidades da cantora, levando tenazmente avante um projecto no qual apenas ele parecia acreditar. A actuação no Olympia de Paris surge extraordinariamente bem documentada, mas a sombra do “mau beber” da cantora está lá também, dando nota da dificuldade em controlar o incontrolável. De resto, os episódios caricatos deixam uma marca indelével no filme, com particular destaque para as sobras de um almoço de cachupa que viajou numa panela entre o Hotel e os camarins do Hollywood Bowl, em Los Angeles, ou os momentos tensos com Compay Segundo, em Cuba, durante a gravação de um dueto, e que terminam com Cesária a perguntar-lhe se ainda é capaz de “dar uma trancada”.

A tão almejada casa acabará por erguer-se no Mindelo, numa altura em que Cesária Évora empreendia tournées insanas de quatro meses, duas vezes por ano, aproveitando os intervalos para descansar. Só que o descanso era sempre condicionado pelas multidões que a procuravam para lhe pedir dinheiro ou simplesmente para a conhecer. Os momentos finais do documentário apresentam-nos uma Cesária Évora muito doente, a sofrer de doença bipolar que a retém em casa durante onze anos e que, na fase de mania, a leva a gastar verdadeiras fortunas em ouro ou em carros topo de gama. Entretanto sobrevêm dois acidentes vasculares cerebrais, o último dos quais, em 2011, se revela fatal para as suas aspirações de continuar a cantar, visto ter afectado as cordas vocais. Morreu em 17 de Dezembro desse ano no Hospital Baptista de Sousa, em S. Vicente, vítima de “insuficiência cardio-respiratória aguda e tensão cardíaca elevada”. Terão sido as imagens poderosas da última homenagem de todo um povo à sua diva, que levaram Ana Sofia Fonseca a avançar para este documentário. Um documentário que não termina sem reivindicar a construção de um espaço de memória no Mindelo, terra que viu nascer Cesária Évora e onde se espera que possa ser devidamente recordada.

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