Graça Morais nasceu no Vieiro, concelho de Vila Flor, cinquenta quilómetros a norte do santuário rupestre do Vale do Côa. Em criança, aproveitando um intervalo da escola ou um dos seus momentos de brincadeira, era vê-la pegar num pedaço de telha ou numa pedrinha aguçada e dar asas à imaginação, espalhando rabiscos pelas superfícies rugosas das fragas graníticas que, como toalhas, se estendiam ao redor da aldeia. Aquilo que a artista fazia nos seus tempos de menina não era mais do que responder a um irreprimível apelo que em todos nós se manifesta pela necessidade absoluta de comunicar. Já tinha sido assim há 20.000 anos, com os artistas que deixaram as suas assinaturas nos imponentes “telões” de xisto das margens do Côa, de cabras, cavalos e auroques feitas. Assim permanece nos dias de hoje, não fazendo Graça Morais mais do que perpetuar as marcas distintivas de uma ancestralidade em torno da figuração do homem e da sua ligação à mãe natureza.
Patente no Museu do Côa até ao próximo dia 25 de Setembro, “Mapas da Terra e do Tempo” é uma extraordinária exposição de pintura da artista, reunindo meia centena de trabalhos inspirados na arte do Paleolítico, muitos deles inéditos. Neste “acerto de agulhas” com as mais antigas manifestações artísticas – que ultrapassam as fronteiras do Côa e se estendem às grutas de Chauvet ou de Altamira, à enigmática figura conhecida pelo “homem-bisonte”, encontrada na caverna de Les Trois-Frères, em França, ou à Vénus de Willendorf -, Graça Morais explora, com sensibilidade e virtuosismo, as origens da arte tal como hoje a entendemos, bem como a própria motivação do artista a sós com a tela, intermediário de uma “conversa” maior que une deuses e homens. Na sobreposição de linhas e formas, na interrupção abrupta do traço ou na aglomeração dos elementos, é a relação com as gravuras do Côa que nos surge de forma evidente nos trabalhos de Graça Morais, ao mesmo tempo que nos mergulha na transversalidade destes elementos em relação ao conjunto da sua obra.
Tomados pelo encantamento, penetramos nas salas de exposições temporárias do Museu do Côa como quem entra numa gruta e se vê, de súbito, confrontado com a magia de um lugar onde a presença do homem se manifesta de forma esmagadora. Está lá todo um quotidiano que gira em torno dos animais, das plantas e das próprias pessoas, como está uma panóplia de sinais gráficos abstratos, de natureza mística, cuja linguagem visual se firma em territórios dos conceitos, símbolos, valores e crenças. A beleza das composições, a forma clara e simples de se abrirem ante o nosso olhar, adquire um significado ainda maior quando pensamos no espaço que nos envolve e em tudo o que representou e representa em matéria de evolução de mentalidades e conhecimento. Na tela ou na rocha, profundamente actuais ou guardiãs de um tempo que se conta em milénios, exuberantemente vivas ou ténues e gastas pela exposição aos elementos, as obras de Graça Morais ou as gravuras rupestres dos artistas do Paleolítico fundem-se em simplicidade e harmonia e mostram o quanto a arte, por insondáveis mistérios, é parte inalienável da própria natureza humana.
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