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segunda-feira, 20 de junho de 2022

TEATRO: "A Mina"



TEATRO: “A Mina”
Direcção artística | André Amálio e Tereza Havlíčková
Criação, dramaturgia, interpretação | André Amálio
Co-criação, movimento | Tereza Havlíčková
Criação musical e interpretação | Edison Otero
Interpretação e co-criação | Florinda Santos Sousa, Maria dos Santos Vicente, Maria Gama, José Sousa, José Gaspar Ferreira, Serafim Ramos, Daniel Vieira, Patrícia Lima, Vilma Lima, Carla Pontes Monteiro, Eduarda Bento, Rafael Magalhães, Bruna Rocha, Mário Sá, Marta Salazar
Direção do coro | Guilhermino Monteiro
Coro Vox Populi (e convidados) da Escola secundária de S. Pedro da Cova | Abel Alves, Alberto Lopes, Ana Ulisses, Carla Pontes Monteiro, Inês Salselas, João Mesquita, Luís Diego, Olga Martins, Manuela Santos, Rui Mendes, Teresa Queirós
Cenografia | Aurora dos Campos
Vídeo | Marta Salazar
Produção | Companhia de Teatro Hotel Europa
Duração 100 Minutos | Maiores de 12 anos
Teatro Carlos Alberto
16 Jun 2022 | qui | 19:00


Embora tivessem passado já três anos, as peças “Amores Pós-Coloniais” e “Passa-Porte” continuam bem vivas na minha memória. A uni-las está o “carimbo” Hotel Europa, a companhia de André Amálio e Tereza Havlíčková que, desde 2015, vem afirmando a sua voz na nossa cena teatral ao estabelecer pontes entre o passado e o presente mediante a abordagem de questões ligadas ao colonialismo, às migrações, ao ambiente ou à gentrificação, entre outras. Assim, foram certos e seguros os passos que me levaram ao Carlos Alberto para uma hora e meia de teatro documental com muito para revelar, a verdade das palavras carregada de emoção na voz dos protagonistas de uma história que nos faz recuar no tempo e olhar para aquilo que foi o complexo mineiro de S. Pedro da Cova ao longo de quase dois séculos. E se a nossa atenção permanece centrada nas minas, tal não tem já a ver com o passado mineiro e a actividade de extração de carvão que foi o principal sustento de famílias inteiras, antes com a deposição, em 2001, de toneladas de resíduos tóxicos da Siderurgia Nacional, ainda hoje não totalmente removidos.

Foi com a comunidade de S. Pedro da Cova que André Amálio e Tereza Havlíčková trabalharam “A Mina”, testemunho vivo sobre o passado mineiro e os atuais problemas ambientais que se colocam àquelas populações. Tudo começara em 2018 com uma reportagem da Antena 1, “Vizinhos Perigosos”, assinada pela jornalista Cláudia Aguiar Rodrigues. O que André Amálio escutou deixou-o indignado. Dessa indignação nasceu a necessidade de reforçar os canais de denúncia de um tão grave atentado ambiental e da incúria e desleixo do Estado Português na resolução do problema. Em S. Pedro da Cova foi recebido pelo “cavalete” que, com a sua imponência, lhe lembrou que deste local, nos anos 30 e 40, saía 65% da produção nacional de carvão. Pareceu-lhe ver a “jaula”, sempre a subir e a descer, levando para o fundo da mina homens e trazendo o minério. Também as britadeiras, de joelhos no terreiro, partindo pedra incessantemente o dia inteiro. Ou os filhos dos mineiros a lavarem as costas de quem, do fundo da mina, regressava a casa exausto e coberto de negro. Ou ainda o eléctrico que, do coração do Porto, transportava os operários para o complexo mineiro. A ideia de construir a peça mediante a reprodução do que viu e ouviu estava a desenhar-se na sua cabeça. Daí a levá-la ao palco do Carlos Alberto foi um pequeno passo.

Mas não levou apenas as “cenas” tal como as viveu e sentiu. Levou também os protagonistas, homens e mulheres de S. Pedro da Cova, mineiros, enchedores, britadeiras, os seus filhos, os seus netos: José Sousa, 83 anos, enchedor, engatador, carteiro; Daniel Vieira, 36 anos, neto de mineiro e britadeira; Serafim de Oliveira Ramos, 71 anos, mineiro, filho de mineiro; Patrícia Lima, 32 anos, neta de mineiro e britadeira; Vilma Lima, 25 anos, neta de mineiro e britadeira, irmã de Patrícia; Florinda Santos Sousa, 79 anos, filha de mineiro, irmãos mineiros e marido mineiro. Como estes, outros trabalhadores da mina, com os seus gasómetros, as suas picas e martelos, pás e marcas, capacetes, óculos de protecção, tabaqueiras, vagonas, zorras, cavalos, a imagem de Santa Bárbara. Com os seus riscos, as suas mortes por acidentes de trabalho, as suas doenças profissionais, a falta de direitos, a desigualdade e a violência sobre si. Com as suas histórias de quem vai levar o café ao pai e traz um carrego de carvão de primeira desviado “à socapa”; de quem lembra os avós, ela “alta, cabelos compridos, pele e olhos claros, sardas”, ele um maltês, um “Zé Pequeno cheio de lábia”; de quem foi obrigado a mutilar-se para ter direito a uma baixa médica; ou, de quem teve de passar pelas mãos de um tal Dr. Porfírio de má memória, com tanto de malvadez e com tão pouco de humanidade.

Com esta argamassa se ergueu o edifício que a peça de teatro é. Um edifício emocional, onde o choro e o riso andam de mãos dadas com os cânticos ou com os gritos. Em palco, quinze não-actores dão corpo às suas próprias personagens, emprestando-lhes também a sua alma. A voz dos mais novos espelha o que de mais forte permanece na memória dos mais velhos, desse tempo outro em que a mina era um imenso formigueiro. Sentimos o quanto esses tempos penetraram no seu sangue e nos seus ossos: “Era um trabalho duro, mas era o nosso trabalho”, lembra a propósito Maria Vicente. André Amálio e Tereza Havlíčková mostram-se exímios na forma como conduzem a acção, como pegam nas peças e as encaixam no seu devido lugar, abrindo espaço a narrativas intensas em torno dos fenómenos sociais, económicos, éticos, morais e políticos que envolvem o drama. Entretanto chegamos a Março de 1970 e a mina fecha. O Estado Novo quis passar um risco sobre o assunto mas o 25 de Abril veio impor com força a vontade do povo. Ocupam-se os escritórios da minas, surge o Centro Revolucionário Mineiro, S. Pedro da Cova vive um Verão particularmente quente. Hoje, de décadas de exploração industrial, sobram ainda algumas toneladas de resíduos perigosos. Quando veremos um clarão abrir-se sobre as populações de S. Pedro da Cova pondo fim ao seu pesadelo? Quando escutaremos, no fim desta história, “e viveram felizes para sempre”?

[Foto: Teatro Nacional de São João | https://www.tnsj.pt/]

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