Um rapaz espreita através do vidro para alguém sentado no interior de um automóvel. Do lado direito do rapaz, uma mão discretamente estendida parece pedir esmola. Aquilo que mais prende a nossa atenção, porém, é o intenso reflexo que rasga o lado direito do rosto do rapaz, permitindo observar o plano contrário no qual surge uma pessoa com um chapéu de sol largo na cabeça. Quem será aquele rapaz, tão compenetrado naquilo que vê? Quem será o homem de chapéu largo, cuja mão parece segurar algo à altura do peito? A mão estendida estará mesmo a pedir esmola? Por um mero acaso, saberemos responder à segunda questão. O homem de chapéu é o fotojornalista Paolo Pellegrin e esse não é um dado irrelevante nesta equação. A sua presença situa-nos de imediato na Síria ou no Sudão, no Afeganistão ou na Palestina, em Guantanamo ou no Haiti, na Indonésia ou em Angola. Todos eles são lugares de conflito, lugares onde a violência preenche a paisagem e pinta os rostos de dor e morte. Máquina fotográfica segura à altura do peito, indicador direito permanentemente pousado sobre o botão de disparo, é aí que, desde 1992, podemos encontrar Pellegrin. Nesses sítios onde, como ele diz, “os momentos de violência se aproximam dos momentos de esperança”.
Por estes dias, à boleia do f/est Festival Internacional de Fotografia de Amarante, podemos ver Paolo Pellegrin e a sua fotografia no Museu Municipal Amadeo Souza-Cardoso. “As I Was Dying” é o nome desta impactante exposição, conjunto de imagens que colocam o espectador no “olho do furacão”. Na mulher dobrada sobre si própria ao lado de uma criança vítima da epidemia de cólera que grassa em Luanda, no cadáver arrastado pelas ruas de Basra após um intenso tiroteio, nos olhos congestionados de um jovem que chora a morte de João Paulo II, nos corpos que se acumulam cobertos de lama depois da passagem do tsunami por Banda Aceh ou no grupo de homens que tentam resgatar sobreviventes dos escombros de um prédio após os bombardeamentos da força aérea israelita sobre uma área residencial de Beirute, é na intensidade daquelas imagens que reside a principal nota de desconcerto, ao mesmo tempo tão reais, pela violência que delas emerge, e tão belas, pela maestria dos enquadramentos e pela força das composições. Passo em revista, de forma rápida, os olhares de muitos fotojornalistas com os quais me tenho cruzado e nunca, como em Paolo Pellegrin, a arte que é possível extrair daquilo que de mais primário habita o ser humano alcançou uma dimensão tão terrivelmente perturbadora.
Das breves palavras que o artista dedicou à sua exposição, retenho as seguintes: “ (…) sinto que é neste espaço tão delicado e frágil que envolve a morte, o espaço que às vezes tenho como privilégio e como fardo de entrar, que existe a possibilidade de um encontro com o outro de uma forma que vai além das palavras, cultura e diferenças. Trata-se de se expor, por um momento, diante do outro e diante do acto e do mistério de morrer. Nesse momento, sinto que estou a olhar para algo que não consigo ver completamente, mas que está a olhar para mim. É nessa troca que se encontra algo simultaneamente universal e profundamente íntimo; na morte do outro há uma perda que é de todos.” Perante tão profundo e sentido testemunho, encontramos o fundamento de “As I Was Dying”, escolhido para ser o título da mostra. Num espaço privilegiado de partilha, Luís Silva, Director do f/est Amarante, falou das muitas dúvidas que teve em levar por diante esta exposição, sobretudo num momento em que há um conflito armado no continente europeu. Mas haverá melhor forma de parar com a guerra do que expôr os seus excessos, a sua brutalidade, a sua iniquidade? Sucessão de murros no estômago, “As I Was Dying” é uma exposição superlativa, daquelas que não deixará ninguém indiferente.
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