LIVRO: “Saramaguíada (A invenção de Pilar)”,
de Pedro Guilherme-Moreira
Edição | Virgínia do Carmo
Ed. Poética Edições, Setembro de 2017
“O que preenche os leitores de todos os mundos é precisamente a identidade entre a realidade e a ficção: os leitores vão buscar aos livros a revelação de algumas vidas ilegíveis, os escritores decifram equações complexas que nunca lhes foram propostas: a ficção, e na ficção a fracção, são, na verdade, as mais profundas camadas da realidade.”
De tempos a tempos o milagre acontece. Da pasmaceira geral, ergue-se um livro que ousa afrontar convenções e afirmar-se pela diferença, que vem para inquietar o nosso ramerrame e abrir espaço ao pensamento, que nos diz que o caminho pode ser mais estreito ou mais íngreme, mais difícil de trilhar, mas que é, ainda assim, caminho. [Por mor da verdade, cabe fazer aqui um parêntesis para dizer que “Saramaguíada” não é um caminho, antes uma ideia de caminho]. Estamos perante um livro que vive de e para as ideias, que as alimenta e nelas descobre o seu próprio alimento. Que sorri face ao que têm de fugaz e incorpóreo, lhes segura as pontas e, desassombradamente, se dispõe a desenrolar meadas mesmo que não haja meada alguma. Que envolve essas mesmas ideias numa carícia e as mostra como elas são, coniventes, íntimas, alheadas dos espaços e dos tempos que são os seus, tumultuosas, babélicas, organizadamente desorganizadas, irrevogavelmente livres.
Mas deixemos por um momento as ideias e concentremo-nos no concreto. O livro que temos na mão é concreto. Tomamos o peso às suas mais de trezentas páginas, olhamos aquela capa, as belíssimas ilustrações de Vasco Gargalo, aquele caminho que começa (ou acaba) em Paris, e isso é concreto. Como concretos são outros escritos que neste encontram guarida, do “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, à correspondência que Saramago trocou com José Rodrigues Miguéis; do “Lolita” de Nabokov ou do “Dom Quixote” de Cervantes, aos sermões do Padre António Vieira. Vieira, Cervantes, Nabokov, Miguéis, Saramago. E também Maria Amália Vaz de Carvalho, Alexandre O’Neill, Adeodato Barreto, Virginia Woolf, Leni Riefenstahl e, claro, Pilar del Río, a mulher inventada. [Segundo parêntesis, “mulher inventada”, como todos os outros citados, aliás, reais porque sim e porque a ideia do escritor assim os quis]. Tudo é real porque inventado.
Embora complexo e exigente, “Saramaguíada” lê-se de um fôlego. A única coisa que é pedida ao leitor é que se abstraia, que mergulhe no mundo das ideias sem reservas nem preconceitos, que tome moderadamente a sério aquilo que vai lendo, por muito pouco séria que a leitura possa parecer. Acima de tudo, que desfrute, que se divirta. Que ria com Eça e Esse (de Saramago), em Tormes como em Paris, escutando as suas fantasias como quem escuta dois coronéis à beira de uma piscina. Que seja tomado pela angústia ao aportar à ilha de Corfu tomada pela peste. Que se emocione com os últimos momentos de um labrador preto, velho e insolente, de nome Shadow. Que se indigne com este mundo que os “jornalistas sem cabeça” nos querem impor. Que celebre todos os farmacêuticos de nome Esteves (com ou sem metafísica) e todos os cavaleiros (de triste ou alegre figura). Que vibre com a descoberta de Saramago e a invenção de Pilar. Que se deixe envolver por este mundo das ideias - que é de todos e não é de ninguém -, como se fora um actor mais de um filme a preto branco. Um filme de Buñuel, que nos fala de liberdade e dos seus fantasmas.
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