Páginas

sábado, 12 de fevereiro de 2022

LIVRO: "Cal"



LIVRO: “Cal”,
de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal Editores, Outubro de 2007 (Reimpressão em Outubro de 2013)


“Ela espera os pequenos milagres: a água que deixa de escorrer fria no tanque em início de junho, os naperons a ganharem idade, o pires que se parte quando lhe escorrega das mãos. Ela guarda os alfinetes espetados numa pequena almofada. Ela guarda postais de Natal na gaveta. Ela senta-se no sofá que a filha lhe deu e fica a olhar para o quadro que comprou na feira, ou para o elefante de loiça, rodeado de caçadores que trepam pelo seu corpo com lanças que são palitos, ou para o pinguim de barro, sobre o frigorífico, com uma cartola. Por toda a cozinha, ouve-se o relógio na parede, o ponteiro dos segundos.”

Nem só de abandono, isolamento e solidão é feita a vida de um velho. Esta será, porventura, a maior de todas as ideias que atravessam “Cal”, oitavo trabalho publicado de José Luís Peixoto, conjunto de dezassete contos aos quais o autor acrescenta três poemas e ainda uma pequena mas particularmente divertida peça de teatro. Apesar das fotografias amareladas nas molduras, dos azulejos baços da casa de banho, das enciclopédias nas estantes cobertas de pó, dos sonhos acordados feitos de cabelos brancos e secos, peles muito moles e rostos muito velhos, os dias da Ana, da Estrudes, da Ti Carlota, do Josué ou da Ti Julha, também podem ser limpos de sol e céu azul, compridos e fartos de histórias, com uma ou outra aventura de permeio. Em cada uma destas figuras percebemos que a vida pulsa ainda com força, como quando corriam a recolher os pedacinhos de cortiça, mergulhavam no rio ou jogavam à apanhada com o Peixoto, o pai do escritor.

José Luís Peixoto tem esse dom de pôr por palavras aquilo que há de mais simples no nosso quotidiano. Apropriando-se do tempo guardado nas memórias, estruturado na relação de cada pessoa consigo própria, o autor faz dele uma entidade corpórea, emprestando-lhe princípio, meio e fim. Estes velhos não estão presos ao passado. O autor recusa resumir a sua vida a um punhado de recordações estéreis que sejam a única razão de ser da sua precária existência. Antes nos mostra que cada tempo tem na história o seu lugar preciso e que o presente é para ser intensamente vivido antes que a noite eterna venha e cubra tudo com o seu manto. É por isso que estes velhos continuam a fazer a sua vida normal, a regar a planta da borracha da entrada, a fazer o almoço, a ouvir os tangos que antigamente, depois de afastarem a mesa e as cadeiras, dançavam na sala, habituados que estão “ao olhar amarelo dos objectos, ao calor a arder debaixo da pele, como se tinham habituado ao reumático e a tudo”.

Preenchendo quase metade das páginas do livro, a peça de teatro intitulada “À Manhã” é nele um caso à parte. Nela, Ti Estragão (Trinta Cabelos), Ti Olga Despedida, Ti Macha do Artilheiro, Ti Irininha e Ti Vlademiro Costelas Bambas têm em comum o facto de contarem para cima de setenta anos. Percorrendo os doze meses do ano, a acção tem essa particularidade de nos mostrar que, a partir de certas idades, os tempos e as estações metem-se uns nos outros de forma indistinta. Com um espírito vivo e livre, a escrita busca a intemporalidade das emoções e dos gestos, mergulhando o leitor numa rábula divertida, pontuada por termos como “moquino” ou “bocanço”, que a vestem de um picaresco quase vicentino. A peça esteve em cena no Teatro São Luiz, em Janeiro de 2006, com dramaturgia de Natália Luíza, que assinou também a encenação, juntamente com Miguel Seabra. Globalmente, “Cal” não estará no leque das obras maiores de José Luís Peixoto. Mas oferece, inegavelmente, um contributo importante para a compreensão do conjunto da obra deste escritor maior.

Sem comentários:

Enviar um comentário