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quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

LIVRO: "Nocturno"



LIVRO: “Nocturno”,
de António Canteiro
Ed. Gradiva Publicações, Setembro de 2021


“(…) começara piano a música, a par com a entrada no palco de um pastorinho, meio derreado, segurando, com as mãos nas patas uma ovelha, às costas, levando o presente-cordeiro ao Menino que havia nascido, em Belém; outra figurante, saída de um vão de escadaria de fontanário, equilibrava à cabeça uma cânfora de barro, conduzindo-a até à gruta onde Ele nascera; por fim, três Reis Magos, encavalitados numa vassoura, com olhos levantados, postos numa estrela, caminharam ordeiramente para o centro do presépio vivo, alusivo à quadra; erguendo-se, por fim, os assistentes aclamaram com palmas, quando a luz da última estrela se apagou; (…)”

Pela sua singularidade, a voz que emana da escrita de António Canteiro mostra-se irresistível - e este será, porventura, o maior elogio que lhe posso deixar. Uma voz que me seduziu, desde logo, em “A Luz Vem das Pedras”, pelo trabalho de filigrana no tratamento dado às palavras, na forma de as arredondar, vestindo-as de emoção e poesia, que preenchem, tanto quanto saciam. Uma voz marcadamente romântica, que alcança o apogeu no sublime “Vamos Então Falar de Árvores”, e que encontra continuidade neste “Nocturno”, um livro que vai beber o seu título à peça culminante da obra instrumental do compositor António Fragoso, arrancado tragicamente à vida aos 21 anos de idade. Um drama inominável cujas marcas subsistem, indeléveis, até aos dias de hoje, na pequena aldeia da Pocariça, não longe de Coimbra, de onde o músico era natural.

Recuando ao primeiro quartel do século passado, o autor oferece-nos um retrato de época onde sobressai a vida na aldeia, pontuando-o de um lirismo de acento trágico que surpreende e fere. “Nocturno” mergulha nos tempos tenebrosos da “pneumónica”, uma pandemia de gripe de cariz extremamente maligno que tomou conta do mundo em 1918, ceifando a vida a mais de quarenta milhões de pessoas. Figura principal desta história, o compositor António de Lima Fragoso sucumbirá à doença e, com ele, três irmãos, duas primas e uma tia, todos debaixo do mesmo tecto e no curto espaço de uma semana. Carregados de negro, os primeiros quadros são cruéis na sua dimensão humana, remetendo para as ironias e injustiças escondidas nas dobras do destino e, ao mesmo tempo, obrigando-nos a pensar nos ciclos da História e em como a realidade de há cem anos se mostra tão viva e presente nos nossos dias.

Com o leitor “em ponto de rebuçado”, António Canteiro toma-o pela mão e convida-o a conhecer os lugares que marcaram a sua própria infância: os campos polvilhados de flores e frutos, de animais que pastam, de gente que deles cuida; as árvores que dão guarida aos pássaros e se agitam com o vento; os lameiros, as margens dos rios, a água a cantar nas fontes; um pequeno animal que se esgueira furtivo; os risos das crianças que brincam no adro da igreja sob o olhar das catequistas; ao longe o bramido do mar. Como ninguém, o autor sabe tirar partido dos elementos naturais, deles extraindo as notas de uma “partitura universal” onde se abrigam os sons e tonalidades que abraçam e inspiram a Humanidade. Vestindo a sua escrita desta musicalidade, António Canteiro acrescenta-lhe, delicadamente, a harmonia e a cadência próprias das grandes obras. O resultado é este “Nocturno”, dilacerante, comovente, que escutamos com admiração e aplaudimos de pé.

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