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sábado, 11 de dezembro de 2021

LIVRO: "De Maneira Que É Claro..."



LIVRO: “De Maneira Que É Claro…”,
de Mário de Carvalho
Ed. Porto Editora, Setembro de 2021


“Num letreiro manuscrito, afixado no cinema, pediam-se colaboradores. E lá aparecemos uma noite, o Quim João e eu, a oferecer-nos. Fomos bem recebidos, mas notámos por detrás dos sorrisos e das boas-vindas, um fio de desconfiança. Eram tempos de bufos e de informadores, a polícia política tinha ventosas por todo o lado. Fôssemos embora muito novos, eles sabiam lá ao que nós verdadeiramente íamos. A suspeita era legítima. O Cineclube funcionava como uma segunda linha do movimento cultural impulsionado pelas associações académicas. Lá nos puseram a preparar sobrescritos de comunicados a enviar aos sócios. E voltámos e tornámo-nos assíduos. ‘Envelopes’, a grande tarefa.”

É-me difícil ver em “De Maneira Que É Claro…” um livro de contos. São, sobretudo, relatos breves roubados à gaveta das memórias, aparentados na forma e tamanho, sem ordem cronológica definida, alinhados ao sabor das emoções. No seu conjunto, cobrem um arco temporal de três décadas de vida intensa, ao correr dos quais Mário de Carvalho partilha com o leitor os primórdios de uma infância feliz e os momentos de uma adolescência aberta à curiosidade e à grande necessidade de saber mais sobre um mundo de difícil compreensão, mas também as acções de resistência ao regime de Salazar, as lutas académicas, o serviço militar interrompido pela prisão e o posterior exílio na Suécia ao qual o 25 de Abril se encarregará de pôr termo. De amores e desamores não fala Mário de Carvalho, só coisas práticas. De maneira que é claro…

Das primeiras braçadas na piscina grande do Algés e Dafundo ao velho caderno de Latim, a transbordar de lições esquecidas, são noventa e seis as peças de um puzzle que, devidamente encaixadas, nos permitem ficar a conhecer melhor a pessoa e o seu percurso de vida notável a muitos títulos. Neste desfiar de memorabília - “factos ou coisas dignos de memória ou que se guardam como lembrança” -, Mário de Carvalho compõe o retrato de um país acanhado, cinzento, desconfiado e atrasado, tolhido por um regime ditatorial avesso ao livre pensamento, brutal nas acções contra os seus opositores, ao mesmo tempo que afirma as tomadas de consciência política, a sua filiação ao Partido Comunista Português, as reuniões clandestinas, as “credenciais”, os “pontos de apoio”, a prisão do pai, a sua própria prisão, a coação, a tortura do sono, o exílio num país distante, o regresso com Abril e a "terceira via", a longa e dolorosa separação do seu partido de sempre.

Num estilo de escrita muito próprio, que cativa e sacia, Mário de Carvalho adopta o discurso directo para se abrir ao leitor em retalhos de vida plenos de significado e emoção. Vergadas ao peso das vicissitudes, carregadas de ironia, leves e belas de tão inocentes e quase sempre envoltas num humor delicado, as histórias narradas são sinónimo de alegres brincadeiras e rebeldias inocentes, mas também de resistência e luta, de cumplicidade e solidariedade. Professores, colegas de escola, camaradas de partido ou a humilde gente que ajudava só por ajudar são aqui evocados com calor e apreço, peças fundamentais que foram na vida do escritor. Tijolo a tijolo, Mário de Carvalho mostra-nos como se ergue e consolida o edifício de uma vida, buscando nas fraquezas a força de lutar por aquilo em que se acredita. Não fazem ninho os milhafres nas cavernas dos leões.

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