LIVRO: “As Doenças do Brasil”,
de Valter Hugo Mãe
Ed. Porto Editora, Setembro 2021
“O negro aninhou novamente entre a folhagem e, à sua guarda, ficou o grito de ferro. O corpo morto era a dez passos dali, alguns bichos abeiravam ao cheiro do sangue. Incrédulo, o negro escolheu apenas esperar. Havia algo de muito absurdo em tudo aquilo. Não parava de pensar que o branco fora abatido, impotente contra a tocaia de Honra, não parava de pensar o quanto isso era feio e o quanto isso trazia justiça aos seus povos negros. Então, Meio da Noite capacitou-se para sentir um nervosismo feliz. Até mesmo que os bichos pudessem abeirar o cadáver para o devorar, Meio da Noite pensou nisso e sentiu uma incontida alegria. Pensou que gostava de Honra. Pensou que era importante que Honra fosse e voltasse em segurança, magnífico, destemido em sua coragem e em seu ódio. Ele entendeu que o guerreiro branco fazia a coisa certa. Era santo. Era inteiramente santo naquilo que acabara de fazer.”
É com emoção que falo de “As Doenças do Brasil”, pelo que de espanto e delícia me trouxe e pelo que de razão e consciência acrescentou à minha condição de leitor. Na sua peculiaríssima forma de contar uma história, Valter Hugo Mãe voltou a deixar uma importante parte do trabalho para o leitor, obrigando-o a pensar a própria literatura naquilo que nela há de mais substantivo e essencial: a palavra. Sentir cada palavra como um formidável constructo de imagens e símbolos cujas raízes se firmam no primordial e instintivo, é aceitar um desafio que implica tempo, paciência e perseverança. É um novo “aprender a falar”. Para isso, porém, é fundamental resistir ao “calvário” que são as primeiras cinquenta páginas. Importa perceber que cada palavra é uma pedra do edifício lexical que pacientemente nos dispomos a erguer. Em breve, descodificar as palavras e os seus sentidos será tão natural como ler este texto e compreendê-lo. Há uma janela a abrir-se no nosso cérebro e das sombras despontará a luz. Uma luz penetrante, ofuscante, imensamente bela.
A acção deste livro remete para um período de expansão colonialista no Brasil e para a realidade do poderio do homem branco sobre as comunidades índias. Nas “ilhas dos três mares”, a tribo dos abaeté vive no respeito pelos valores ancestrais e em plena comunhão com a natureza. As pressões e ameaças, porém, não tardarão a fazer-se sentir e o horizonte irá tingir-se de nuvens ameaçadoras à medida que se torna clara a verdadeira intenção do invasor. Sob a verde e exuberante Amazónia há uma doença a espalhar-se e que o Padre António Vieira, no seu Sermão da Visitação de Nossa Senhora (1638), tão bem descreveu: “Esta foi a origem do pecado original, e esta é a causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde. Perde-se o Brasil, Senhor digamo-lo em uma palavra porque alguns ministros de S. Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens.”
Impregnado de uma forte espiritualidade, repleto de homens e mulheres “imprudentemente poéticos”, “As Doenças do Brasil” é um livro poderoso, tanto pelas imagens que convoca como pela mensagem que pretende espalhar. Ao proclamar ideias de pureza e humildade, mas também de coragem e justiça, na figura de dois adolescentes muito diferentes entre si, Valter Hugo Mãe estabelece um fortíssimo contraponto à maldade e ignomínia que preenchem os corações daqueles que tomam a cor da pele como um sinal de superioridade, para desprezar, humilhar, oprimir e aniquilar. Saibamos compreender que não há presente sem passado e esse, no Brasil como em muitos outros lugares deste mundo, deixou marcas fundas. É importante essa consciência para terminar seus efeitos e começar a mais elementar solidariedade. Ao menos, a solidariedade, contra toda a agressão, espoliação e assassinato a que sujeitam ainda os povos originários, esses que são o Brasil original, o Brasil sem as doenças brancas que quase os extinguiram.
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