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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

CINEMA: "A Metamorfose dos Pássaros"



CINEMA: “A Metamorfose dos Pássaros”
Realização | Catarina Vasconcelos
Argumento | Catarina Vasconcelos
Fotografia | Paulo Menezes
Montagem | Francisco Moreira, Catarina Vasconcelos
Interpretação | Manuel Rosa, João Mora, Ana Vasconcelos, Henrique Vasconcelos, Inês Campos, Catarina Vasconcelos, José Manuel Mendes, João Pedro Mamede, Cláudia Varejão, Luísa Ministro, José Maria Rosa, Ana Margarida Vasconcelos
Produção | Pedro Fernandes Duarte, Joana Gusmão, Catarina Vasconcelos
Portugal | 2020 | Documentário, Biografia, Drama | 101 Minutos | Maiores de 12 anos
Cinema Vida
19 Nov 2021 | sex | 18:15


“Beatriz e Henrique casaram no dia em que ela fez 21 anos. Henrique, oficial de marinha, passava largas temporadas no mar. Em terra, Beatriz, que aprendeu tudo com a verticalidade das plantas, cuidou das raízes dos seis filhos. O filho mais velho, Jacinto, é meu pai e sonhava poder um dia ser pássaro. Um dia, subitamente, Beatriz morre. A minha mãe não morreu subitamente, mas morreu quando eu tinha 17 anos. Nesse dia, eu e o meu pai encontramo-nos na perda da mãe e a nossa relação deixou de ser só a de pai e filha.”
Catarina Vasconcelos [sinopse de “A Metamorfose dos Pássaros”]

É com uma sinceridade desarmante que Catarina Vasconcelos nos mergulha neste que é o seu primeiro filme. Creio que com a mesma sinceridade, a mesma verdade das coisas simples que preenchem o seu tempo, desde que irrompeu no primeiro choro até ao dia em que exale um último suspiro. Com o mesmo carinho, também, falando de si e dos seus com voz ciciada, cuidando de guardar cada momento seu no lugar que cabe às coisas únicas e preciosas. Nesta reunião de três gerações, ligadas entre si por um amor genuíno, a realizadora define o seu lugar e defende-o com a força das emoções. Nele aprende como passado, presente e futuro se organizam num continuum vital, franco, distinto, preciso, definitivo. Nele se revê como ser único e irrepetível que é, oferecendo-se em transparência e pureza através de um objecto-espelho que se “lê” como um poema: doloroso, pungente, libertador.

Os detratores daquilo a que se convencionou chamar “cinema português” encontrarão aqui motivos de sobra para se refastelarem mais a sua sanha crítica em torno de palavras como “monotonia”, “apatia” ou “tédio”. O ritmo do filme é lento, os movimentos de câmera são reduzidos ao mínimo, a presença da voz off é quase uma constante, a imagem recai com frequência sobre naturezas-mortas. Mas como fazer de outra forma e, ao mesmo tempo, respeitar um texto com vida dentro e a substância incorpórea de um tempo que se pretende palpável? De uma enorme sensibilidade e beleza, “A Metamorfose dos Pássaros” afasta-se da razão para resolver este dilema, dele se derramando um manancial de emoções que envolvem o espectador, se emaranham nas suas histórias e memórias e o aconchegam numa atmosfera de grande espiritualidade e fascínio. Um verdadeiro bailado das palavras que o convida a pensar o tempo, de que forma o vive, o que dele espera.

Pode a terra secar e a árvore não voltar a erguer-se, mas os pássaros continuarão a voar ao redor, saudosos de um tempo outro em que se abrigavam nos seus ramos. Premiada na secção “Encounters” da edição de 2020 do Festival de Cinema de Berlim e apontado para representar o nosso País na corrida aos Óscares, esta é uma obra que funciona como um álbum de recordações (uma sensação acentuada pelo 4:3 em que é filmada). Nela se fundem a palavra e a imagem, num exercício catártico de dor e luto que transforma a experiência traumática em significativos momentos para sempre guardados no lugar das memórias maiores. Aquilo que se abrigou na sombra dá-se a ver em luz. O que se afigurou complexo mostra-se em simplicidade. Há edifícios maiores no que parecem apenas ser fragmentos. É assim o cinema de Catarina Vasconcelos, delicado e sensível, espraiando-se infinitamente ante o nosso olhar até repousar nos corações.

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