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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

EXPOSIÇÃO: "Rapture" | Ai Weiwei



EXPOSIÇÃO: “Rapture”,
de Ai Weiwei
Curadoria | Marcello Dantas
Cordoaria Nacional, Lisboa
06 Jun > 28 Nov 2021


A palavra “rapture” tem vários significados. Em inglês, é o momento transcendente que liga a dimensão terrena e a dimensão espiritual. Ao mesmo tempo, é o rapto, o sequestro dos nossos direitos e liberdade. “Rapture” pode ser também o entusiasmo sensorial com o êxtase. A exposição patente na Cordoaria Nacional reúne todos estes conceitos em duas dimensões criativas de um artista ícone dos nossos tempos: de um lado a fantasia, onde essa pesquisa do imaginário é explorada; do outro a realidade e a emergência de assuntos que transbordam nas nossas vidas. Olhamos à nossa volta e facilmente constatamos um aumento das assimetrias entre os mais ricos e os mais pobres, com um consequente agravamento das condições de vida por razões políticas, sociais ou ambientais. É sobre esta realidade que Ai Weiwei reflecte, oferecendo-nos uma visão atenta a questões essenciais que afligem todos os povos e levantando questões como de onde viemos e o que estamos a fazer aqui.

Reunindo oitenta e cinco obras, onde se incluem instalações e esculturas em grande, média e pequena escala, assim como vídeos e fotografias, esta é a maior exposição de sempre na Europa do icónico artista e dissidente chinês. Na sua condição de activista político, símbolo da resistência à opressão e defensor dos direitos civis e da liberdade de expressão, Ai Weiwei provoca-nos com a sua forma de olhar e interpretar o mundo, devolvendo-o sob a forma de arte. “Forever Bycicles”, peça composta por 960 bicicletas que nos recebe ainda no exterior do edifício da Cordoaria Nacional, traz consigo uma mensagem nada inocente, à semelhança do que podemos esperar de todas as outras peças. Esta escultura remete para um tempo em que todas as famílias na China possuíam uma bicicleta e é também uma forma de lembrar que as bicicletas vão sendo postas de parte, sendo o aumento do tráfego rodoviário, dos acidentes e da poluição atmosférica uma consequência de políticas pouco amigas do ambiente.

Já no interior do edifício, somos recebidos por uma instalação designada “Snake Ceiling”, uma cobra gigante pendendo do tecto com um comprimento de 47 metros. Feita de mochilas, a peça é uma homenagem às mais de 5.000 crianças que morreram em consequência de um terramoto na província chinesa de Sichuan, depois das suas escolas, construídas com má qualidade, terem ruído. É também uma forma de lembrar aquilo que a propaganda governamental se esforçou por alterar ou apagar. “Circle of Animals / Zodiac Heads” ocupa uma extensa porção da ala nascente e é uma reformulação dos doze animais do zodíaco chinês; também aqui o artista “não dá ponto sem nó”, evocando um episódio sombrio da relação da China com o Ocidente, a Segunda Guerra do Ópio e a destruição pelas tropas ocidentais de Yuanming Yuan ( o antigo palácio de Verão, em Pequim), em 1860. A obra levanta questões sobre pilhagem internacional, a natureza do património cultural, bem como a relação da China contemporânea com a sua própria história.

“Life Cycle”, uma gigantesca peça em bambu, fio de sisal e seda que remete para a crise global dos refugiados, representando um barco insuflável onde se amontoam os corpos de homens, mulheres e crianças. Esta peça tem um contraponto no outro extremo do edifício com “Law of the Journey (Prototype B)”, um bote insuflável com dimensões aproximadas do anterior e repleto de figuras insufláveis. A ele se “agarram” os mais de um milhão de refugiados que entraram na Europa em 2015 e a visita que nesse mesmo ano Ai Weiwei fez à ilha italiana de Lesbos. Entre as peças mais significativas, destaque ainda para “Odyssey Tile”, um painel de azulejos com nove metros de comprimento por 4,46 de altura, produzido em Portugal em colaboração com artesãos da histórica fábrica “Viúva Lamego”, que ilustra a experiência do artista em 40 campos de refugiados de 23 países em 2016.

Os 81 dias que Ai Weiwei passou numa pequena cela de detenção acolchoada inspiram a peça S.A.C.R.E.D., conjunto de seis reproduções das suas vivências, vigiado dia e noite por dois guardas mesmo nas situações mais íntimas. Entre os vídeos, vale a pena atentar em “Sunflower Seeds”, instalação que cobriu o chão da Tate Modern, em Londres, com 100 milhões de “sementes de girassol” feitas em porcelana e pintadas à mão por 1.600 artesãos chineses. Através dela. Ai Weiwei Incitou o público a caminhar sobre estas delicadas peças, qual alegoria sobre o destino do povo chinês. Também “Human Flow”, documentário que apresentou no Festival de Veneza e que retrata a chegada de um barco de refugiados a uma praia de Lesbos, merece uma visão atenta. Mas há também mármore e cortiça impregnados de contestação. O artista chinês deixou-se imbuir das tradições nacionais e criou “Brainless Figure in Cork”, um autorretrato produzido pela Corticeira Amorim que une a tecnologia de uma máquina industrial CNC à escultura manual. E ainda uma enorme escultura de mármore em forma de rolo de papel higiénico, “Pendant”, um produto humilde que ganhou um caráter épico durante a pandemia. Sem qualquer espécie de dúvida, uma exposição que marca o ano de 2021 e que pode ser vista só até ao próximo domingo.

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