Páginas

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

LIVRO: "Ana de Amsterdam"



LIVRO: “Ana de Amsterdam”,
de Ana Cássia Rebelo
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2015


“Morro quando chego pela manhã e morro quando parto pela tardinha. Morro por saber que voltarei no dia seguinte. É lá, na rua mais feia da cidade, que me cruzo com o poeta Nuno Júdice. Traz sempre um jornal ou um livro por baixo do braço. O olhar é incerto e inseguro. Fixa as pedras da calçada. Não olha os homens, nem as mulheres, nem os automóveis, nem o renque medonho de árvores sombrias. Não levanta sequer os olhos para ver a rapariga velha, de olhos feios, atravessar a passadeira, ajeitando a saia de ganga, num gesto desastrado de sedução.”

Aqueles que, como eu, tiveram a oportunidade de escutar Ana Cássia Rebelo numa das mesas do Festival Literário de Ovar, em Setembro passado, terão intuído nela uma mulher singular, alguém que assume frontalmente os traços de uma personalidade depressiva e que se serve da escrita “quase como uma terapia”. Marcadamente autobiográfica, a fazer fé nas suas palavras, a escrita apareceu na sua vida de forma quase acidental, mas acabou por se transformar num vício. É, se bem entendo aquilo que nos quer dizer, uma escrita verdadeira, muito auto-focada na autora e nos seus problemas, “uma devassa da intimidade”. Frontal, sem papas na língua, Ana Cássia Rebelo faz questão de mostrar o seu lado crítico, questionando a moral e os bons costumes e deixando no ar a ideia que “no dia em que deixar de escrever vai-se o meu Inferno.” Até lá, persiste. Insiste.

“Ana de Amsterdam” começou por ser nome de blogue. Na primeira entrada, um poema de Chico Buarque empresta-lhe a força e a coragem: “Sou Ana do dique e das docas / Da compra, da venda, da troca de pernas / Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas / Sou Ana das loucas / Até amanhã / Sou Ana / Da cama, da cana, fulana, bacana / Sou Ana de Amsterdam.” Abrangendo um arco temporal superior a oito anos, uma selecção desses textos encontra-se agora reunida num livro com o mesmo nome do blogue, ao encontro de “uma mulher cheia de falhas, que se expõe cruamente, não raro com uma certa dose de autoflagelação (…), uma mãe que deu mil voltas ao seu interior e tem a coragem de nos revelar espontaneamente (sem literatices, sem culto da dor, sem explicações pomposas) o seu inferno íntimo e o que de mais secreto ele tem”, como escreve João Pedro George no prefácio ao livro.

Intenso, penetrante, mordaz, tenaz, corajoso, “Ana de Amsterdam” começa por ser uma pequenina folha que rompe a terra húmida e acaba por se transformar numa densa e luxuriante floresta, cheia de cores e cheiros e sons e frescura. Nele, o banal toma o lugar do universal. Com Ana Cássia Rebelo, olhamos o “lugar comum” e percebemos o quanto de incomum pode encerrar. Ancorada na observação dos pequenos nadas que preenchem os nossos dias, a autora entreabre-nos portas da nossa própria existência, lembrando-nos o quanto certas “divisões das nossas casas” precisam urgentemente de ser arejadas. Com mais ou menos Xanax ou Cipralex, com mais ou menos angústia e solidão, “Ana de Amsterdam” é a vida como ela é, feita de consultórios assépticos, anúncios para a disfunção eréctil, duas mulheres que dançam ao som dos tangos de Carlos Gardel, peças de dominó e marmelada de pilritos.

Sem comentários:

Enviar um comentário